12.2.04

O videotexto (Post XXVII)

- Desculpa por passar aqui a essa hora, mas eu não podia deixar isso pra depois.

Ele ouviu o pedido em pé, de pijama, à uma da manhã, enquanto eu desligava o carro e conferia pelo retrovisor os estragos que a mãe do locutor havia feito no meu cabelo.

- Oi pra você também...
- Desculpa, de verdade. Eu sei que estou um pouco nervosa, mas...

Suspirei, cansada daquela vida. Eu teria me divertido com a idéia de terminar com aquele noivado, se não julgasse o clone um belo exemplar da espécie dos "bons moços". Adoraria fazer a cena da moça que diz "não" e vai embora no meio da cerimônia - sempre foi um dos meus maiores sonhos de consumo. Mas pensar em fazer isto com aquele rapaz que havia cuidado de mim depois do estrago que o ex havia causado, parecia doentio. Terminar naquelas condições também não era boa idéia, mas eu não suporava mais enganá-lo.

- Você não quer entrar e conversar com calma?
- Não.
- Quer conversar aqui na rua?
- Não, não quero.
- E o que você quer?
- Eu não quero casar.

Ótimo! Na bucha e da pior forma, sua anta!

Olhamos um para o outro em silêncio. Não era para ter saído daquele jeito. A idéia inicial era usar o velho papo de que não era por ele, que na verdade eu estava confusa, que tudo havia acontecido muito rápido, que eu não tinha nada a ver com o vestido de noiva da mãe dele, que eu achava que ainda gostava do ex... Ok, ok, as duas últimas desculpas eram reais, mas eu, naquela época, não era dada à verdade. Precisava de uma boa mentira. Uma desculpa que deixasse toda a culpa para mim, seria o ideal.

- ...Espera. Não é bem assim.

Ele entrou no carro...

- O que está acontecendo?

Decidi explicar direito e largar mão de ser covarde.

- A quanto tempo a gente se conhece?
- Tempo suficiente para namorar, noivar e casar daqui a exatamente dois meses.

Um agiota não faria cobranças melhor do que ele...

- Então estamos combinados. Casamos. Casamos daqui a dois meses. Eu juro que paro de frescura, conto aos meus pais de uma vez por todas o que decidimos, paro de crises e a gente casa. Eu adoro você, sei quem você é e o que posso esperar dessa relação. E acho que você pode dizer o mesmo sobre mim, não é mesmo?
- Agora sim concordamos.
- Pode ou não pode?
- O quê?
- Você pode dizer o mesmo sobre mim? Tem certeza?
- Tenho. Claro, que tenho. Eu amo você.
- E isso basta?
- Basta. Por quê? Pra você não é o suficiente?
- Se você soubesse quem eu sou de verdade, bastaria.
- E eu não sei?
- Não. Você não sabe. E é por isso que há dias eu ando tão nervosa com essa história de casamento. Eu não quero casar com alguém que não saiba quem eu sou.

Poucas foram as vezes que me dei ao trabalho de dizer a verdade a um homem. Aquela era uma tentativa realmente honesta...

- Você está me traindo?
- O quê? Do que você está falando?
- Tem outro cara? É isso? Está me traindo?

Por que em uma hora como esta, tudo cheira a traição?

- Se eu me sentisse comprometida com você eu estaria.
- Ah, é?
- É. E isso não significa que eu estou saindo com outra pessoa.
- E significa o quê, então?
- Significa que você não suporta saber sobre o meu passado, ignora o meu presente e acha que terá um futuro encantado comigo. Você não sabe quem eu sou. Não sabe quem são meus amigos, não conhece os lugares que eu freqüento, dorme nos filmes que eu gosto, não sabe que eu ronco, nunca me viu acordar no dia seguinte porque não sabe que eu não durmo. Odeia que eu fale palavrão e não gosta do jeito que eu sou. Não sabe que sempre que você me deixa em casa achando que eu vou dormir eu saio para alguma festa que eu prefiro ir sem você. Você não sabe que eu tomo anfetamina desde os quatorze anos para ficar o menos gorda possível. Não sabe que eu, naquele dia do acidente, estava tentando voltar com o Lucas e que você, fisicamente, apesar de odiar essa história, é mesmo muito parecido com ele. E não sabe que, há duas horas, eu estava sendo arrastada pelos cabelos pela mãe de um garoto de treze anos que eu achei que estava apaixonada só para poder arranjar uma boa desculpa pra me separar de você.

Pronto. Tudo em uma porrada só.

- Treze anos?

Era incrível como ele ouvia só o que lhe interessava. Uma audição quase feminina...

- Não. Eu não sabia que ele tinha treze anos. Ele mentiu pra mim. Eu não o conhecia pessoalmente - só pelo videotexto e pelo telefone, mas nunca aconteceu nada. Olha, não vá pensar bobagem, porque de forma alguma eu...
- Chega. Eu não quero mais ouvir.
- Eu imaginei que não quisesse. Aliás, você nunca quer ouvir.
- Você estava me traindo com um garoto de treze anos... Eu não acredito.

Sempre fiquei impressionada com a capacidade que os homens passionais tem de, em um piscar de olhos, se transformarem em amebas ambulantes.
- Não é possível que eu esteja ouvindo isso. Não. Pára! Pára um minuto. Você ouviu alguma coisa do que eu disse?
- Eu vou matar esse moleque!

Imagine um pesadelo. Um bem grande! Daqueles que não acabam nunca e que são cheios de cenas surreais. Era o que eu estava vivendo. Só queria que o sujeito não casasse enganado, e ele se enganando. Eu ainda tentei explicar melhor a confusão, mas, cinco minutos depois, vendo que ele não parava de tagarelar bobagens, percebi que eu também não sabia quem era aquele cara que estava ao meu lado. Se casássemos, casaríamos vendados - tanto eu quanto ele. Talvez como a maior parte daqueles que se casam e esperam esperançosos que as vendas nos olhos nunca caiam. Mas, definitivamente, aquele era o tipo de susto que eu não queria reservar para o meu futuro.

Certo, chega de consideração por hoje.

- Quer saber? Chega! Não quero e não vou casar! Estou cansada de gente louca. Estou tentando pela primeira vez na vida terminar uma história de um jeito decente e você não entende uma palavra sequer do que eu digo.Toma. Está aqui a aliança que você me deu. Agora, por favor, sai do meu carro e me deixa ir embora.

Ele pegou a aliança, bateu a porta, enfiou-se pelo vidro aberto e...

- É falsa.

Disse isso com ares de cinismo, deixou que ela caísse dentro do carro e foi embora. Eu não sabia se ria ou se chorava. Quem era pior ali? Loucos, bando de homens loucos! Celibatária. Dali pra frente eu viraria celibatária. Como é que alguém pede a mão de uma garota em casamento dizendo que aquela era a aliança de noivado que foi dos bisavós, avós, pais e blá-blá-blá, pra depois dizer que é falsa? E onde estava a merda do amor e da confiança que ele havia me jurado? Aquilo parecia piada de judeu. E de mau gosto! Era como se ele estivesse desconfiando de mim, dos meus interesses...
Indignada, parei o carro em um posto para abastecer e achar o raio da aliança.

Quem esse cretino pensa que eu sou? Quero que ele engula essa porcaria de anel! Ele e a mãe dele. Não, só ele. A mãe dele pode engolir aquele vestido de bozo que ela casou.

Abaixei a cabeça, revirei os tapetinhos de borracha no assoalho do carro e lá estava a aliança. Ela e...

- O que é isso?

.... estrela ninja.


--------------------->> Continuará em Amarula com Sucrilhos

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