CUIDADO COM O PISO FLORESCIDO
Primavera é o inverno do asmático. Tenho que me desviar das paineiras. Meus caminhos ficam mais longos. Não compareço a reunião de condomínio do jardim botânico nessa época. Depois me acostumo com o aluguel. Ser puro cansa. Deus cansa. Mesmo quando encontro o que estava perdido não interrompo a busca. Posso encontrar o que não estava perdido, que é bem mais difícil de achar. A verdade nunca é dita de barriga vazia. A mentira nasce da fome. Dou prazos para encerrar as atividades mais prosaicas: parar de fumar, por exemplo. Dar prazo é planejar os vícios. Meus vícios - ao menos - são organizados. Buscar o filho no colégio me envelhece. Mas não faço barulho com a sopa. Telefone de bateria e celular acabaram com a ginástica de cordas dos braços. Levantava o aparelho e esticava o fio preto aos ombros. Ficarei flácido em nome da tecnologia. Destruí minha reputação cedo para não ficar preocupado com ela depois. Minha memória é capim, se parece com a grama, porém cresce mais rápido. Eu não lembro, eu pasto. Não sou vingativo senão não teria tantas vidas perdidas, tantas vidas pela metade. Perguntei a uma amiga: me ensina a te compreender? Ela me respondeu: "não sei te ensinar, aprende e depois me ensina". Estou sempre em vantagem com os outros, em desvantagem comigo. Olho para trás por qualquer assobio. Tudo é pretexto para não olhar para frente. Imprevisivelmente previsível. Invisivelmente visível. Não gosto de ir a cinema sozinho e segurar na mão ossuda da poltrona. Prefiro a mão quente e macia da Ana, para me lembrar do miolo do pão na saída. Só me levarei a sério ao morrer. Queria morrer pequeno, encolhido, para entrar em um violino. O violino faz beliche com as cordas. Na noite, quem é sóbrio sobra. Odeio restos de sabonete. Odeio sabonete de hotel que já é resto e nem foi usado. Ser solteiro é bom, até que termina o papel higiênico e não há ninguém em casa. Emudeço quando estou envergonhado e me abrevio em iniciais. O tímido autêntico não fica vermelho no rosto, mas nas orelhas. Brincadeira de mau gosto é uma piada que alguém ri antes de terminar de contar. A vida não me deixou mais sábio, talvez mais prevenido. O melhor de viver é se repetir. Alimento com alpiste os antepassados no porta-retrato. Porta-retrato é gaiola de gente. Não tiro a poeira do vidro, a poeira exige respeito, água antiga. Eu me espero de banho tomado.
.:. Fabricio Carpinejar .:.
7.10.04
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