HERZOG
23 de outubro de 1975. Completei três anos, meu aniversário abria a boca em Porto Alegre com seus dentes de leite. A inocência sem ré. Andava somente para frente. Não dissimulava, não mentia, desconfiava do velho do saco, mas não olhava debaixo da cama para não ser apanhado. 24 de outubro de 1975. Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura, vai à sede do Doi-Codi em São Paulo para prestar esclarecimentos sobre a sua atividade política. Ainda acreditava que seria um depoimento. Ainda acreditava que logo estaria em casa. Tiraram suas roupas. Fecharam a porta. A sauna sem outro bafo que não o do corpo. Lá está ele, terrivelmente só. Nem suas dores o acompanham. Nada. Segura a cabeça e esconde o rosto. Sua nudez está no rosto mais do que no corpo. Sua nudez é o rosto, corpo do corpo. Rememora a mulher talvez, o que teria dito para ela pela última vez e se recrimina de ter falado um 'até logo' sem memória, de faltar com o pressentimento. Faltou dizer uma vida. Está uma vida por dizer, mas nunca faltou com a verdade. O medo é tão forte que não sente o cheiro de nada, nem de si, muito menos das entranhas da noite, dos braços no rosto. Um homem desesperado é um desenho feito por uma criança. A tinta redonda em dois olhos. Duas corujas nos olhos. Resumido em traços breves, espaçados. Herzog. Sem colchão no estrado, sem estrada. Não irá dormir, bem sabe. Não irá acordar. Deixaram o relógio para mentir seu tempo. Zombam com fotografias. É sua derradeira foto vivo. Não ri, não está com a família para rir. Está fechado em uma palavra. O que faltou dizer para sua mulher. Escreve na parte escura dos lábios. Na mesa dos lábios. Descreve o que sua voz apanha. Escreve com o dente da frente. Queria ter dentes de leite como um desenho de criança, para ver os outros chegando. Para deixar debaixo de uma escada e receber a recompensa das formigas. Vlado. Ali fora é Vladimir. Na porção escura dos lábios, na mesa dos lábios, responde apenas ao apelo Vlado. Boçais. Todos boçais e frios e sádicos e de ferro roubado nos ossos. Não insulta. Não queimará o toco da vela de suas mãos para jogar luz ofendida. Prefere proteger a luz com os braços, disciplina o facho a permanecer. A chama da vela do rosto contra o hálito das frestas. Sua nudez impassível, impossível. É ele, um homem completando os cabelos com as mãos. Completado, não consumido. O último gole de seu corpo será ele a tomar, mais ninguém. O último gole do corpo - Deus não alcança. O último gole da respiração é de quem perde a morte para sempre. Pegaram suas roupas. Choro ao olhar a foto dele no jornal. Não o entendo. Meu pai arranca a folha, assustado. 25 de outubro de 1975. Foi o velho do saco, pensei. Amarrado em uma janela menor do que sua altura. Uma janela que não nasceu para o suicídio, que nunca será árvore e lustre de pássaros. Foi assassinado pelas suas roupas. Sua nudez foi assassinada pelo seu cinto. Aquele cinto que afivelou de manhã para amar o dia. E que demorou a escolher. Desamaram Herzog com o cinto. Uma mão familiar de seu próprio couro. O cinto. Fora de sua altura, forjado. Um cinto que nunca fechará sua morte, que não é cova para cobrir sua morte, lençol para tapar seu abandono. Não será enterrado perto das pedras. As pedras falam dormindo. Não foi ele que se matou, não foi ele que morreu, foi a consciência de que mesmo no meu aniversário alguém pode morrer, que não é proibido matar a inocência em meu aniversário.
.:. Fabricio Carpinejar .:.
21.10.04
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