25.10.04

O Elogio do Tédio

"O problema do homem moderno não é a maldade dele. Ao contrário, ele prefere, no conjunto, por razões práticas, ser bom. Simplesmente, ele detesta se entediar. O tédio o aterroriza embora não exista nada mais construtivo e generoso do que uma boa hora cotidiana de tempo morto, de instantes sacais, de encheção paralisante, sozinho ou acompanhado. Só o tédio permite gozar o presente, mas todo mundo procura o contrário: para não se chatearem, os ocidentais fogem através da televisão, do cinema, da internet, do telefone... Eles nunca estão no que fazem, visam apenas por procuração, como se fosse uma desonra ficar apenas respirando aqui e agora. Quando se está na frente da televisão, ou na frente de um site interativo, ou telefonando pelo celular não se vive.
Como fugir do divertimento? Enfrentando a angústia.

O mundo é irreal exceto quando é sacal."
- Frédéric Beigbeder

Com alguma experiência no assunto - ao estar literalmente coçando o saco por sete dez meses ininterruptos - eis que vos intero desse bem-ou-mal que é o tédio. Não o tédio endomingado dos trabalhadores, da falta de programação na televisão, do esgotamento de ingressos do show de sábado, da ausência de som, do olhar vago. Não o tédio adolescente dos que ficaram em casa no final de semana, porque mamãe queria que estudassem Química Orgânica para a prova de segunda-feira. Não o tédio congelado em plano, feito quadro, por um minuto de reflexão. Não o tédio passageiro. O tédio vago. O tédio provocador. O tédio impulso. O tédio magro.

Falarei do tédio induzido, do tédio provocado, do tédio cutucado com vara curta, do tédio longa-metragem, do tédio sem frescura.

Porque é assim que me sinto muitas vezes, querendo sem querer, sentado em minha cama, lendo um livro interrompido, ligando a televisão, me levantando para trocar de canal só para fazer exercício porque deixei o controle-remoto cair debaixo da cama, desligando a televisão, abrindo a porta, mudando de idéia, fechando a porta, abrindo a porta de novo, andando pelo corredor, checando se minha mãe vê televisão no mesmo lugar, se minha irmã janta ao chegar da faculdade sentada na mesma cadeira, voltando para o quarto, sentando na cama, abrindo o livro interrompido.

Com vontade de estourar a cabeça na quina de todos os móveis para ver se algo de novo acontece, se o sangue vai espirrar pela tela da televisão desligada, se a dor será muita, quantos pontos vou levar na testa, quantos analgésicos vou ter de tomar para dormir tranqüilo às duas da manhã. O tédio enclausurado, fechado, enjaulado, enlouquecedor. O tédio meia-noite. O tédio demente.

Uma vez em estado de tédio, difícil recompor-se ao estado normal, é uma injeção de anestesia, a dor lateja, quer gritar, escorrer e não consegue.
Sei que não é muito bom provar do pote, sei que é causa provocada, antes alarmada e, talvez por isso, seja tão perigosa mas, ao mesmo tempo, nos dá o valor exato do divertimento, do tempo-à-toa, sem conta no relógio.

Diria que a vida de vagabundo é doce, melhor do que se imagina e eu a adoro. Nada como dormir às três pensando no que não vou fazer amanhã, ou no que vou deixar para depois de amanhã. Nada como ouvir música na segunda sem pensar no trabalho de terça, na prova de quinta ou no relatório de sexta. Nada como não saber que dia é hoje ou em que mês estamos. Mas não por sete dez meses.
Seria ótimo por uma semana, suficiente por três, mas tedioso por sete dez meses.

Então quero arranjar um trabalho. Na locadora. A locadora é aqui perto, a um quilômetro de casa. Me daria bem na locadora, gosto de filmes, sei dos novos títulos, poderia ler alguma revista importada, decorar o imdb, persuadir os clientes a alugar filmes terríveis. Quem sabe procurar algo nesse negócio que acaba de abrir na minha rua. Deve ser bom trabalhar na rua de casa. Sem gastos com transporte ou almoço. Alguns passos e estaria de volta. E tchum! Meu mundo encolhe trezentos metros a cada dia que passa.

Primeiro era o universo, e o céu não era o limite. Com o sonho arruinado de me tornar astronauta, veio a estratosfera. Ainda era o mundo, com as chances de me tornar Imperador Geral de Todas As Nações, mas veio Bush Jr. Depois era a América com meu talento para a música e a minha aptidão nata para a guitarra e aí veio a realidade. Hoje é o meu quarto.

Amanhã o meu umbigo. Depois o meu fígado, meus rins, minhas tripas, toda a minha carne e devoro-me com verocidade porque nada me resta, nem o infinito, nem a juventude dos meus 18 anos. Só eu, eu mesmo e minhas tripas. Pensamentos jogados ao vento, cacoetes, idéias absurdas, sensação de sede, sudorese, calafrios. Poderia ser catalogado ou identificado como doença psicótica de ordem gravíssima, mas não é nada não, é só tédio.

"A vida é aquilo que nos acontece enquanto estamos ocupados com outros planos." - John Lennon

Thiago Capanema Não vá se perder por aí

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