20.5.05

DIÁLOGOS DE SEMÁFORO

– Moço, leva aí um pouquinho de minha verba de gabinete.
– Não, não posso.
– Ah, vai, moço. E não fecha o vidro do carro, não. Por favor!
– Escuta, deputado, eu prefiro ensinar a fazer uma peixada do que ser cooptado por peixe graúdo, entendeu?
– Mas, moço, veja bem. Eu podia estar gastando em outra coisa. Eu podia estar contratando parentes. Eu podia estar aliciando votos pra base governista. Mas eu estou aqui, só pedindo pro senhor pegar um pouco de minha verba de gabinete. Olha aí. Dois mil reais. Dois e quinhentos. Três mil, pronto! Vai. Pega aí, pra ajudar.
– Ajudar como, deputado?
– Ah, moço. Pegou muito mal a aprovação do último aumento da verba. Até minha filha, que faz pós-graduação de economia na PUC, diz que os colegas ficam jogando moedinhas no chão quando ela passa. Uma vergonha. Pega um pouco aí, vai. Pra pelo menos eu poder olhar minha família de cabeça erguida! Pega aí, moço, pra ajudar em casa!
– Hum. Não sei.
– Seguinte, moço. Quatro mil reais. Pronto. Mais duas vagas no avião da comitiva presidencial! Três! Três vagas!
– Certo. Pra ajudar, então. Mas olha: não acostuma, viu? Amanhã vou passar nesse semáforo aqui e não quero ver o senhor de novo. Certo?
– Sem problemas, moço. Amanhã é quinta – o senhor não vai me ver aqui, nem no Congresso nem em lugar nenhum de Brasília. Valeu!

*********

– Psiu. A porta do seu carro está aberta.
– Imagina, ó musa. Pra você está aberta a porta do meu carro e a do meu coração. Aliás, pra você eu abro, escancaro, dou meu coração em oferenda no altar do auto-sacrifício passional.
– Er… o sinal vai abrir.
– Sim, princesa. Assim como minha alma se abre pra receber você em júbilo, como uma noiva diáfana com as melenas cobertas por flores de laranjeira e aclamada por um coro de querubins.
– Olhaí, o sinal ficou verde.
– Sim, verde como os campos floridos que serão palco de nossa inenarrável cerimônia de conjugação espiritual, qual Teseu e Hipólita numa noite de verão, minha musa. Ouço, ouço agora as buzinas como escuto, com os ouvidos da alma, os sinos bimbalhando, as campânulas anunciando nosso conluio. Vejo pelo retrovisor o motorista de trás emulando em voz alta o tonitruar da bigorna de Vulcano, onde são forjados os relâmpagos que prenunciam a chuva que renova a terra e faz germinar a semente de nosso amor. Vejo a longa fila de carros atrás de nós como um séquito a acentuar o espírito de congraçamento e confraternização. Isso, amada, parta, corra, vá à frente e já prepare nosso recanto, a senda de nosso aconchego, pra que quando eu chegar você já esteja paramentada com o branco da pureza da entrega. Vejo, ó musa, o policial de trânsito que se aproxima como a autoridade cerimonial que irá lavrar nossa união; ele traz o bloco de multa como quem porta o livro sagrado da consumação do… Veja só, é uma policial – como eu não percebi? A austeridade do cargo embotando a graça e o encanto naturais. Boa tarde, policial. Céus: já falaram que seus olhos têm a cor das tamareiras do Peloponeso, e que seus lábios são dois gomos carmim de volúpia e concupiscência? Já?

*******

– Escuta, esse teu adesivo aí. É verdade?
– Qual adesivo?
– Pregado aí atrás, no seu carro: “Sou Deus, graças aos católicos”.
– Ah, claro. O tal negócio. Eles acabaram me comprometendo sem querer, com aqueles adesivos “Dirigido por mim, guiado por Deus”. Houve dupla interpretação por parte do departamento de trânsito. Queriam que eu tirasse carteira, ou iriam proibir os tais adesivos. Então, quando consegui a habilitação – bombei uma vez, sabe; vivia com o pé na tábua – , resolvi comprar esse Uno Mille. E coloquei o adesivo aí, pra evitar dúvidas.
– Pois é. Esse Detran é fogo.
– Sem dúvida. Ah, abriu. Até mais.
– Até. Ah, e cuidado com aquela pista dupla ali, depois da curva.
– O que tem ela?
– Fazem blitz direto, lá.
– Certo, certo.

Ao Mirante, Nelson!

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