a meia
A meia é um negócio importante. Dentro do sapato, em cima da pele do pé. Preta, se o sapato for preto, e bem esticada. Opaca, não deve ser translúcida. Forma, assim, em contraste com a graxa e o brilho do objeto que a envolve, uma composição. Cobre dignamente os dedos compridos e o joanete, enfim, os ossos e músculos que sustentam um corpo no espaço. A base da estrutura. Pode ajudar a definir a consistência de um pé chato, cujas pequenas células ósseas formadoras do colo insistem em tocar o solo. Impulso de agarrar o chão, descer em direção ao centro da Terra que ferve, eternamente. Neutraliza o emaranhado das cores do sangue, da gordura, da unha, dos calos, das dores físicas, do cansaço da tentativa de jogar futebol ou da dança, do salto alto. Silencia as agudezas da alma, que sobem pela coluna e chegam ao pescoço. Tranqüiliza as sinapses dos neurônios. Uma meia preta pode levar à levitação. Uma meia preta no Japão.
Numa peça alemã, as crianças vestidas de rosa, tudo cor de rosa, os sapatos também, só a meia não. A meia preta, sinistra. Já num fulano francês de cabeça raspada, asseado, tudo preto. E a meia também, principalmente. Meias vermelhas existem, no plural, mas são meias de ocasião, de exceção. Não compõem, ao contrário, chamam atenção. Deixam o pé crispado, fazem doer as cutículas. A meia preta não. Esta é apaziguadora, é calmaria do mar em terra firme, é silêncio do vácuo longe da atmosfera. É apolítica, atemporal, irracional sem ser desesperada. É a ausência presente do nada. A meia preta é um abismo possível. Uma abertura, uma falha, uma fenda. Em contato com as partes do corpo, projetadas e desenhadas na planta, canaliza a vida como o braço negro de um rio existente. Sempre existiu e sempre existirá.
as partes do corpo
31.8.04
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