3.9.04

BALADA DOS VINTE ANOS

Fui preso aos vinte anos. E para escapar de uma sindicância que resultaria em condenação por tráfico, me envolvi com o tal advogado porta-de-cadeia. Em seis meses, consegui pagar duas dívidas: com a Justa e o Justo.
Doutor Justo, melhor dizendo.

Consegui fazer tudo sem interromper as aulas na faculdade. E muito menos deixei que o pai e meus seis irmãos peludos soubessem da história. Fiquei quieto. Tudo ia bem, até um dos canas que me prenderam, o Jim das Selvas, ficar no meu pé.
Ele aparecia na porta da pensão do Méier onde eu morava e dava três pancadas na janela. Depois me pedia o que tivesse no bolso. Em geral não era muita coisa, apenas o que sobrava para comer, pagar as contas, comprar uns livros.
Quatro meses nessa merda e caí fora. A maneira que arranjei para fugir foi prestando vestibular. Outro endereço, outra vida.
Era a solução, àquela altura.
Quanta besteira.

Minha família não gostou nadinha, afinal faltavam dois anos para a formatura. Fiz as provas assim mesmo. Passei em sétimo, saí do Rio e fui morar no interior de São Paulo.
Eu era viciado em cocaína, então. Foi difícil, sozinho numa nova cidade. Sobretudo sem conhecer ninguém.
Também não atravessava o auge de minha carreira cômica. E -- sem piada --, aproveitei para tratar do vício, inventando um método baseado em cerveja, quietude, silêncio.
Eu prescindia de platéia, naquele tempo.

E o tempo passou. Por um ano todo consegui não fazer amigos. Às vezes meu único papo semanal era com o garçom de um boteco que freqüentava. Em geral eu ficava lá, sentadão, vigiando as tartarugas da avenida para que não fugissem.
Daí me recuperei e comecei a ir às aulas.

Foi no primeiro dia, quando desci do ônibus. O sol detonava qualquer chance de contorno nítido nas coisas daquela tarde -- e eu a vi -- uma sombra fina, insinuante, sobrevivendo ao dia, cabelos e as mãos no rosto, tentando tapar a luz que entrecortava os dedos finos e refletia na sua pele, até os olhos enormes de heroína de mangá.
Eu me apaixonei, claro.

No ano em que me submeti a esse sistema maluco de recuperação (que consistia num engradado de cerveja a cada seis horas) perdi totalmente meu desejo sexual.
E ele voltou. O desejo voltou novamente.

Parti pra cima dela, armado de sorrisos e olhares, um arsenal de conquista impensável a um travado como eu. Mas a duras penas de avestruz no cio eu a conquistei.
Diana Palmer... Quando prendia os dedos nos fios de suas tranças negras, conseguia ver a lua em suas pupilas e ouvia o batuque de tambores de pigmeus africanos cada vez mais alto, alto e alto, até descobrir apenas ecos de meu coração na noite e um cheiro de queimado.
Então, depois de meses dentro dessa fotonovela romântica tipo Sétimo Céu, tudo começou a dar pra trás.

Certo dia na faculdade vi Jim das Selvas ao lado do ônibus, sorrindo para mim. "Onde pensou que ia?", ele falou, fingindo arrumar a gola de minha camisa. E também "Preciso de grana", seguido de "Já sei onde cê mora" e "De noite passo lá".
Apenas engoli saliva, sem responder.
Aquele era o dia do meu aniversário. Não dava pra acreditar.

Ao chegar em casa vi a silhueta de Jim das Selvas no fim do corredor, ameaçando Diana Palmer contra o muro úmido.
A raiva tomou conta de mim. Algo estranho aconteceu.
Enquanto nos braços pêlos cresciam e uma dor intensa tomava meu corpo, vi a picape estacionar e dela descerem o pai e meus seis irmãos peludos. "Chegamos tarde, chegamos tarde", latiam, em uníssono.
Nesse momento a lua enorme estourou no céu e farejei o cheiro de dama-da-noite e o ganido de todos os cachorros do mundo pareceu subir no quarteirão de cima.
Então enveredei corredor adentro no encalço do Jim das Selvas com as garras em riste e os caninos arreganhados, feliz por ser o sétimo filho homem de minha família, feliz por completar vinte e um anos naquele plenilúnio.

A volta de JRT no HOTEL HELL

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