28.10.07

Da vida tudo se leva

Chega. Chega de folhear revistas de celebridades para ver que fulano passou por um ataque cardíaco quase fatal e, ao convalescer, se deu conta do "valor das pequenas coisas", da "importância de fazer tudo sem pressa" e, oh, ignomínia, de que "da vida nada se leva". Quero abrir agora uma revista de anônimos e saber que seu Altair, aposentado, 67, que todos os dias pega o jornal no portão, ainda de pijama, teve um belo piripaque no peito (os cadernos do jornal se espalharam pela rua, ele machucou a careca na queda; dona Isaurinha quase morre junto) e, durante a recuperação, na enfermaria do hospital São Francisco das Chagas, acordou para a vida: viu o valor das grandes coisas (aquela viajona para Búzios no verão custou o mesmo que o fim de semana em Poços de Caldas, é, bebé?), se tocou que sem pressa tudo desanda (deixa para registrar o palpite da Mega Sena lá na lotérica do Djalma na quarta depois das seis, deixa) e que da vida tudo se leva (o lance é carregar no caixão a grana do pé-de-meia: deixar dinheiro para a Suely e o picareta do Batista? Aqui, ó). Hoje seu Altair continua pegando o jornal (mas dá prioridade ao caderno de economia, onde tem devaneios faraônicos e longas ereções quando lê o Mercado Futuro de Ações), usando o mesmo pijama e com um risinho encruado. Da vida tudo se leva, não vê quem não quer. Dona Isaurinha viu e – há quanto tempo! – gostou.

ao mirante, nelson

24.10.07

Mocó de homem solteiro

Noves fora o “homem de predinho antigo”, aquela criatura que adora um pé-direito alto, um sofá de época e uma luz indireta, o macho solteiro é um desastre no capítulo decoração. Tem lá o seu sofá velho, a sua tv, uma cama barulhenta, três ou quatro panelas - sem cabo - encarvoadas pelo tempo, e copos de requeijão, muitos copos de requeijão, alguns deles ainda com um pedaço do papel do rótulo. Se brincar, o cara coleciona também os velhos copos de geléia de mocotó, um primor de utensílio vintage.

E quando a fofa, toda fina e fresca, nova costela, chega lá no muquifo com a sua garrafa de champanhe?! Procura, procura as taças, para fazer uma graça com o seu mancebo... e nada. O jeito é beber Veuve Cliquot em copo de extrato de tomate. Quem mandou apaixonar-se por um macho-jurubeba autêntico, que vem a ser justamente o avesso do metrossexual (aquele mancebo da moda que se lambuza de creminhos da Lancôme e decora o loft, sim, ele mora num loft, de acordo com as tendências da revista Wallpaper).

Pior é quando ela tenta mudar tudo. E põe aquele quadro caríssimo –artista contemporâneo, tendêeencia!- numa sala que não tem nem mesmo um sofá que preste?! Um desastre.

A fofa, toda metida a besta, não desiste nunca. Ai presenteia o bofe - sim, ela está doida e perdidinha - com uma batedeira prateada ultramoderna com 600 funções, que nunca será usada. Ai fica aquela batedeira high-tech fazendo companhia aos três pratos chinfrins e aos garfos tortos - como se o Uri Geller, aquele parapsicólogo que aparecia no Fantástico das antigas, tivesse jantado por lá ou feito faxina na área.

Ela começa a revirar geral, um deus-nos-acuda, numa casa onde ninguém havia mudado sequer uma planta de lugar. O reino vegetal, aliás, é outro ponto fraco do macho solteiro. Jarros, flores? Nem de plástico.

Na casa do homem solteiro típico, a utilidade triunfa sobre a estética. O cúmulo do utilitarismo. Sofá da tia-avó vira cama, como diz a minha amiga D., co-autora dessa crônica. A cama vira sofá, a rede vira sofá e cobertor, o cobertor vira cortina preso à persiana... A falta de cortina é outra marca registrada do desmantelo do cavaleiro solitário. Quando muito, papel filme. Abajur? De jeito maneira. Tosco no último, ele não tem cultura de luz indireta, nem nunca terá, esqueça.

Outro traço de personalidade do macho solteiro: tudo que chega até a cozinha vira tupperware - aquelas embalagens plásticas de lasanha comprada pronta, caixinha de entrega de comida chinesa ou japonesa, potes de sorvete...

Melhor assim do que as frescuras do ex da minha amiga D., a mesma rapariga acima citada. Ela entrou na casa dele e logo ouviu a advertência, em altos brados: “Não pisa de salto no meu carpete de madeira!”
“Nooooosssssa!,” arreganharia a bocarra o velho Costinha, se vivo fosse.

o carapuceiro

21.10.07

Ensaio sobre a completude humana

água + terra = Lama => vai pro fogo => Barro => sopro divino (ar) = é nóis na fita, mano

dies iræ

8.10.07

O mito da criação sob a perspectiva de um pinto

No princípio era a Vagina. E Deus disse:
— Faça-se a penetração.
Mas o pinto não se mexeu. E, cabisbaixo, perguntou:
— Aquilo não tem dente?
E Deus, em sua eterna sabedoria, deu uma mãozinha a ele. E, após trocar cinco dedos de prosa com o Senhor, o pinto levantou-se, triunfante. Mas, como só tem um olho, complicou-se e acabou entrando na porta errada. E o pinto disse:
— Tá tudo escuro aqui!
E Deus replicou:
— Faça-se a luz!
Então o pinto pôde enxergar. E achou ruim.
— Pô, mas isso aqui é uma merda!
E Deus, em sua infinita paciência, falou:
— Não tá gostando, abilolado?
— É muito sujo.
— Ha! Você precisa ver quando eu criar o Congresso brasileiro.
— Além disso, fede, é quente, mal-iluminado...
— Espere só até conhecer o Recife.
— ... e apertado demais.
— Apertado! O que não é a falta de parâmetros. Tente passar o mês com um salário mínimo no futuro Brasil.
— Além do mais, dói pra entrar.
— Que é que você queria? Qual seria a graça caso não houvesse dor pra, depois, se alcançar o prazer? Olha... isso dá até uma bela teologia, hein? Taí, você me deu uma idéia. Vou inspirar um livro nesse sentido. Mas peraí, dói? Onde é que você... Burronaldo! Você tá no lugar errado! Seu jumentildo! Sai já daí!

E Deus sacou o pinto e, como não tivesse onde lavá-lo, separou as águas que estão debaixo do firmamento daquelas que estão por cima. E o pinto pairou sobre a face das águas. E Deus disse:
— Ui! — e se arrepiou todo, pois a água estava gelada.
Em seguida — porque, apesar de não ter subconsciente, é seguidor de Freud —, o Senhor colocou o pinto no lugar psicanaliticamente correto.
E o pinto achou bom:
— Que maravilha! Quanta diferença! Obrigado, Senhor.
E Deus replicou:
— Isso, vai se divertindo. Quero ver daqui a nove meses.
E o pinto continuou:
— Devo admitir que, tirando a cueca samba-canção, essa foi Sua melhor invenção até agora, Pai.
E Deus não disse nada mas, em sua sempiterna bondade, começou a trabalhar num primeiro esboço de doença venérea. E, para reprimir ainda mais a sexualidade humana, imaginou o casamento como forma de punição.

marconi leal

4.10.07

Casal sai atrasado de casa ao tentar a democracia

O homem nasceu para o halterofilismo.
Levantar a moral da mulher.
É como se o marido fosse obrigado a dizer aquilo.
Mas se ele não declarasse, o que aconteceria?
Mulher não confia na sugestão do marido, confia na observação de outra mulher.

De manhã, ela no banheiro, prova uma roupa e pede a opinião ao marido.
- Olha acho que a calça está um pouco abarrotada na cintura.
- Como abarrotada?
- Parece um saco.
- Tá me chamando de cimento?
- Não, pediu para que a ajudasse, pode colocar algo que deixa a bundinha mais arrepiada.
- Tá falando que minha bunda caiu?
- Não....

Decide trocar tudo, do jeans e blusa põe um vestido. Parte ao trabalho emburrada, com a certeza de que o marido não a ama mais.

Qualquer comentário surgindo de uma boca feminina, não agrediria.

De manhã, ela no banheiro, prova uma roupa e pede a opinião a uma amiga.
- Olha acho que a calça está um pouco abarrotada na cintura.
- Também acho, lembra um saco.
- Pois é, pode tentar algo para valorizar as curvas.
- Boa idéia, nunca gostei mesmo desse jeans. Usei pouquíssimo.

Homem não é espelho de mulher, nem dele mesmo.
A mulher tem independência e domínio no gosto, ela o deixa assistir, apenas isso.
Quando confia no acerto, não desistirá da roupa, ainda que seja um parangolé.
Quando não gosta de um detalhe ou uma peça, nada a demoverá. Nada. Nem o Tratado Lógico-filosófico, de Wittgenstein.
É uma coerência secreta.
O homem não está ali para concordar ou discordar, apesar do pedido ter sido esse.
O homem está ali para amá-la.
Do jeito que vier.

Fabricio Carpinejar