30.1.07

EXEMPLAR COMPÊNDIO SOBRE A FALTA DE TEMPO

Roma não se fez em um dia: foram doze horas corridas, sem intervalo para o almoço. A pressa foi tanta que até hoje você vê o Coliseu, lá, incompleto. O paraíso foi criado em cinco dias, em vez dos quatro bilhões de anos regulamentares, que incluiriam licitação, sub-empreitas e acabamento – e aí ele acabou entregue sem a nascente do Nilo. Os dias que abalaram o mundo foram só dez porque o John Reed tinha gasto todo o adiantamento da editora e precisava mandar os originais logo. Já eu tenho que entregar seis campanhas atrasadíssimas e não anda me sobrando tempo para postar. Ei, idéia para post: parodiando H. G. Wells, A Máquina da Falta do Tempo. Cientista ocupadíssimo é contratado por uma megacorp nipo-americana para desenvolver em tempo recorde um

Ao Mirante, Nelson!

Onesome

Cedo demais para acordar e ainda assim tarde demais para me despedir dela antes que saia para a escola: começo inauspicioso para o fim de semana. Traços discretos revelam a pressa matinal –duas peças de roupa jogadas na cadeira, o banheiro ainda úmido, a toalha pendurada apressadamente que caiu do gancho na parede, a máquina de espresso ligada. A essa altura ela está no trem, provavelmente tentando tirar um cochilo (a não ser que haja alguém sentado logo ao seu lado, porque ela jamais conseguiria cochilar com um desconhecido no assento ao lado). Ms. M. odeia essa convenção ferroviária de pares de assentos voltados um para o outro –a obrigação de desviar o olhar, de sorrir idiotamente quando o desvio não funciona-, e odeia a paisagem suburbana (da cidade para o campus, subúrbio sucede subúrbio, a desolação de marts, condomínios, casas isoladas enfeitadas por desenxabidas e desbotadas bandeiras). Ela poderia adiantar a lição de casa e ler sobre o Magma 3, Dogma 5, Zeugma 9, mas aposto –com certo sentimento de culpa- que o sono não vai deixar.

Tomo café, apanho o jornal. A bicicleta me olha com repreensão estampada nos pedais, mas tá uma chuva besta lá fora, composta, tenho certeza, por aquelas gotas geladas e espessas capazes de encontrar caminho gola abaixo não importa quantas camadas de roupa o mano vista. Me acomodo no sofá do escritório com um livro, mas meu encontro com Messrs. Walker & Sons na noite de ontem impede que eu dedique a concentração necessária às peripécias da economia nazista tais como brilhantemente descritas pelo Dr. Tooze. Leio um pedaço do jornal, penso nela mais um pouco –meio litro de café por hora de aula, estimo, rindo- e decido sair. Dizem que tem 15 milhões de pessoas na região metropolitana -e mais ou menos 14 milhões delas estão fazendo compras no mesmo horário que eu, aparentemente-, mas 15 milhões menos uma igual a zero: cidade fantasma e, em cada loja, em cada rua, a vontade irresistível de sacar o intimorato Blackie do borso e comentar alguma coisa com ela.

Depois de almoçar com amigo ainda mais melancólico do que me sinto –hair of the dog, wha’?- e de comprar mais coisas de que não preciso e presentes propiciatórios, descubro que tempo e perambulação conspiraram para me levar à gare, marromenos meia hora antes do horário em que o trem dela deve chegar. Compro flores, amasso as pobres das flores por conta do excesso de pacotes, alugo armário, confiro horário e plataforma (as câmeras de segurança com certeza já me catalogaram como ameaça). O celular chilreia. Ela, avisando do horário de chegada e perguntando se estou em casa. Sorrio. Compro meu 19° café. Me escondo por trás de uma coluna e das flores amarfanhadas na plataforma de desembarque. Ela desembarca, elegantemente envolta em um casaco que parece um pufe de napa. Deixo o abrigo, aceno. Ela pára. Franze os olhos. Abre aquele sorriso que demole cidades fantasmas. Corre que nem menina pela plataforma, e se lança em meus braços. Eu derrubo as flores, mas consigo dizer “tava morrendo de saudade” uma fração de segundo antes dela.


Filthy McNasty

26.1.07

Hay Kai? Soy contra

A poesia fede, a poesia quer ficar rica, dizia o poeta, com conhecimento de causa. Ou ele dizia outra coisa? Não sei, procuro não prestar atenção em poeta senão o sujeito não sai da minha mesa até eu comprar o incenso. Caso sério.

O problema com a poesia é que ela está ao alcance de todos, e como se sabe, a democracia não funciona em nenhuma área, com a possível exceção das eleições para presidente do Vasco, em que um perfeito exemplar da espécie é sempre escolhido. Democracia representativa é isso aí.

Mas falávamos de poesia, e de como, uma vez alfabetizada, qualquer pessoa pode entrar na brincadeira. E o principal problema é que a poesia, em mãos erradas, tem poder de destruição muito maior do que o das outras artes. Alguns acham que a o caso música é mais grave, porque é capaz de juntar o pior de dois mundos, mas acredito que na música a poesia ruim pode se diluir na melodia ruim e perder nossa atenção facilmente. Ou se a música é muito intrusiva, como grindcore ou Axl Rose, uma anular a outra pela estridência.

Mas de poesia é impossível fugir. Você pode ignorar um músico em um bar, mas seria mais fácil conseguir um visto de saída do Gueto de Varsóvia do que receber o mesmo indulto de um poeta. Ele põe os olhos sobre você, e o silêncio constrangedor em torno faz o resto. Você fica paralisado como um sapo sob o facho de luz.

Quem já esteve diante de um bom orador sabe o poder inspirador que as palavras têm, mas só um mau poeta para dar a dimensão exata de sua capacidade emburrecedora. Experimente encontrar palavras para comentar um livro da Bruna Lombardi. Elas nunca vão fazer justiça às profundezas da ruindade do objeto em questão. Você se sentirá analfabeto de pai e mãe.

Platão, em um texto famoso, disse que os poetas seriam expulsos da sua hipotética República. Eu me contentaria se eles fossem expulsos do recinto.

Arnaldo Branco Mau Humor na Bizz

22.1.07

2007

Decidi que vou investir tudo no meu quarto. Vou comprar um ar condicionado split, três metros de chita colorida suficiente para cobrir uma parede inteira, talvez uma cama nova, ou pelo menos o colchão – porque o atual está me matando – uma mesa de cabeceira com gaveta para guardar o livro que vou ler até o sono chegar. Depois apago a luminária super legal que também providenciarei. E fotos. Fotos espalhadas por toda parte em molduras que eu mesma farei. Aí, no dia que estiver tudo pronto, mudo a minha vida toda lá para dentro. E lá será o meu reino, onde todas as coisas aconteçam exatamente como eu acho que elas devem acontecer. Viverei sozinha lá dentro. Talvez algumas visitas uma vez ou outra, mas coisa rápida, para o lugar não perder nem um pouco da minha cara que não será a que vejo no espelho agora.

bem aqui assim

Tomografia computadorizada - R$ 808,64
Diária de internação - R$ 373,20
Optiray 50 Ml Injetável (santo remédio) - R$ 477,00
Ter uma cólica renal na frente da sua gerente de banco, enquanto você solicita um novo talão com lágrimas nos olhos - Não tem preço

Existem coisas que o dinheiro compra. Para todas as outras existe Whaddafuck?!

Fotografias

Há quem se desfaça de velhas fotos. Eu não. Guardo até um álbum do meu avô, que faleceu há mais de dez anos. Meu avô quando jovem, meus tios brincando no quintal de casa, gente que eu não faço idéia de quem seja. Estão lá, literalmente no fundo de um baú. Para quando eu quiser ver. E de vez em quando eu quero.
Hoje, por exemplo. Revisando essas e outras fotos, encontrei umas quatro ou cinco ex-namoradas (a dúvida numérica diz respeito às "namoradas"; as meninas eram cinco). E tentei me lembrar do tempo que passei com elas... Como, quando foi? O tempo se dobra sem tocar as pontas. Uma foto é só uma foto - nada se resgata. Mas em algum lugar eu sou o mesmo que um dia a olhou pela primeira vez.
E é como guardar um livro. Sabe-se as palavras, mas os sentidos são outros ao longo do tempo. Assim mesmo: Heráclito na veia. Só que num instante eternizado.

será que não faz diferença nenhuma?

19.1.07

Que a terra lhe seja leve

Morto sob 38 metros de terra no desabamento da estação Pinheiros do metrô, o motorista de caminhão Francisco Sabino Torres, 47, transportava 30 mil kg de terra todos os dias no caminhão Mercedes-Benz 2638 que pilotava a serviço do Consórcio Via Amarela. Ele teve de enfrentar a terra de novo na hora do enterro.

Velório realizado em sua casa, na rua Santa Terezinha, Vila Guilherme, bairro de Francisco Morato, Grande São Paulo, o féretro estava marcado para sair ontem às 9h em direção ao cemitério da Alegria. Não deu.

Nessa hora, sob chuva, a rua de terra era lama intransitável. O carro da funerária desistiu. Cerca de 20 operários do consórcio, que foram ao enterro, ofereceram-se para carregar o caixão nas costas -ladeira acima, 200 metros até o asfalto.

Câmeras de TVs ao vivo, a prefeita Andréa Pelizari (PSDB) mandou um trator jogar brita para estabilizar o terreno. O carro funerário conseguiu sair às 11h, sob aplausos de colegas, vizinhos e familiares.

No cemitério, outro problema: os jazigos foram construídos na medida padrão das urnas mortuárias populares. O caixão do motorista Torres era especial, de luxo, pago pelo Consórcio Via Amarela. Resultado: não cabia no retângulo concretado. Demorou. A solução foi enfiá-lo de lado.

O secretário estadual de Justiça, Luiz Antonio Marrey, que fora levar conforto aos familiares, não esperou. O corpo ainda estava encalacrado e o helicóptero da PM com Marrey a bordo sobrevoou o campo santo, voltando para São Paulo.

Pais de três filhos (Kelly, 19, Adilson, 16, e Danilo, 15), marido de Maria Sinhazinha Torres, o motorista era líder comunitário. Passou os últimos 20 anos, tempo de moradia em Francisco Morato, lutando por asfalto. Não deu tempo. Francisco Morato, 200 mil habitantes, só uma indústria instalada, é cidade-dormitório dona dos piores indicadores sociais do Estado. De 1.500 ruas, apenas 400 são pavimentadas. O resto é terra.

LAURA CAPRIGLIONE Folha de S.Paulo - 19/01/2007

Ordem e progresso

Inspirado na triologia das cores de Kieslowski lembrada no último post, comecei a redigir o roteiro de uma bi-logia das cores: verde e amarelo. Os nomes dos filmes serão "Verde" e - adivinhe - "Amarelo". Quando traduzidos para o francês, o russo e o suahili, os títulos poderão ser renomeados para "A ordem é verde" e "O progresso é amarelo".

O primeiro contará a história de um inglês que chega ao Brasil e tenta implantar sem sucesso seus ideais de ordem e método. Para dar a coloração verde que a fita requer, algumas cenas serão feitas num bananal no vale do Ribeira. Como o bananal entra na história é algo que ainda estou definindo. No fim, ele desiste e volta pra Europa.

O segundo filme narrará a vinda de um sul-coreano interessado em abrir uma fábrica de componentes eletrônicos no Brasil que, premido pela absurda carga tributária, pelos ridículos encargos sobre a folha de pagamento, pelos achaques sindicais, pela falta de infra-estrutura e, sobretudo, pela falta de cachorros sem vermes para comer, ele pica a mula de volta pra Coréia no final. A coloração amarela do filme será garantida por figurantes com febre amarela.

Antes de escrever a primeira linha dos roteiros, contudo, redigi meu discurso de agradecimento pelo Oscar que certamente há de vir. Tem seis laudas em frente e verso, tem tudo pra ser lembrado pelo resto da vida da minha mãe.

é por aqui que vai pra lá?

O inapto e o pneu

Na noite de segunda-feira eu descobri que sei trocar pneu.
...
Que foi? Que que tem? Vocês acham que todo homem vem de fábrica com os genes de trocar pneus, abrir jarros e matar baratas? Pois eu só vim com o dos jarros. Matar baratas foi uma habilidade que eu adquiri com o tempo, e trocar pneu foi algo que surgiu com a necessidade. Conto.
Depois da saga que foi obter minha carteira de motorista aos 30 anos de idade, e de enfiar um carro no poste, achei que já tivesse passado pelo batismo da direção. O negócio começou a mudar, porém, quando recebi minha primeira notificação de multa, há uma semana. Quatro pontos na carteira por andar a estonteantes QUARENTA E OITO QUILÔMETROS POR HORA (o limite era quarenta). E então, na segunda-feira, o pneu.
Vinha eu feliz pela Marginal Tietê após deixar a namorada em casa. Havíamos saído para comemorar o aniversário de dois anos de namoro (vejam só que mulher paciente). Pensando no quanto o trânsito estava livre, e que ia chegar em casa rápido, peguei a alça que leva à avenida Governador Carvalho Pinto, via pública com baixo índice de acidentes e alto índice de trocadilhos. No meio da curva, a oitenta por hora (o limite é sessenta; vem me pegar, CET!), um estrondo e o carro fica manco de repente. Quase me enfio na lateral do viaduto. Consegui controlar o carro, porém, e percebi que o pneu dianteiro esquerdo havia estourado.
O que fazer? Eu não tinha idéia. Liguei o pisca-alerta e me pus a pensar. Por pouco tempo: as buzinas atrás de mim (todos os carros surgem do nada quando você está parado na faixa da esquerda de um viaduto com o pisca-alerta ligado) me fizeram perceber que, caso ficasse ali, seria abalroado (vixe mãe) em breve. Então fui conduzindo o carro para a direita, fazendo sinais frenéticos e meio abichalados para que me deixassem passar.
Já do lado direito, outro problema: estava no meio da favela do Boi Lambão Malhado (sei lá o nome da favela). Não sei quanto a vocês, mas eu não ando muito com vontade de morrer, então fui dirigindo o Corsa capenga até passar a favela do Macaco Leproso. O que não adiantou muito: enfiei o carro numa travessa logo do lado da favela do Sapo Pilantra. Os moradores da comunidade (eu estava no meio do território dos caras, melhor ter respeito) estavam todos reunidos num bar ali perto, dançando ao som de um rock retardado qualquer. Capital Inicial, essas coisas. Um sujeito de bicicleta passou três vezes olhando para o carro e para minha cara de babaca.
Sim, leitores, eu tinha medo. Mas ali estava meu meio carro (a outra metade ainda é do meu pai; alguém tem 11 mil reais pra me emprestar?) de pneu furado, e eu precisava solucionar aquele problema. E o pior: estava de calça nova. Se pelo menos estivesse de minissaia, era possível que algum rapaz bondoso parasse para me ajudar. Como não estava, botei mãos à obra: abri o porta-malas, retirei o estepe, o macaco e a chave de roda (não tinha triângulo, nem zabumba, quanto menos sanfona), e resolvi tentar trocar o pneu.
Eu lhes digo: a troca de um pneu parece tarefa corriqueira, mas não é. Ah, não é mesmo! Trata-se de uma ciência hermética, uma arte para iniciados. Aposto com vocês que o teste para chegar a Grão-Mestre da Maçonaria é trocar um pneu. Pois vejam: para começar, não conseguia fazer com que o macaco executasse seu trabalho. Enfiei o safado sob o carro, imaginei onde seria um ponto de apoio decente na lataria, e comecei a rodar aquela joça. O diabo da alavanca ficava batendo no asfalto, e o carro subia um pouco e logo caía. Algo errado. Hora de ler o manual do carro. Consultando o importante documento, descobri que estava usando a ferramenta de cabeça para baixo.
Com o macaco devidamente posicionado, erguer o carro foi moleza. Aí veio o outro desafio: tirar o pneu. Afrouxei o primeiro parafuso sem grande dificuldade, mas os outros não cediam nem a pau. Depois de muito tentar, aceitei a derrota e fiz o que qualquer mocinha faria no meu lugar: liguei para o seguro.
O rapaz que me atendeu deve ter achado graça na minha incapacidade, mas garantiu que o socorro chegaria em meia hora. Provavelmente um negão que me olharia com desdém e tiraria os três parafusos usando apenas dois dedos. Que se fodesse: no que me dizia respeito, o problema estava resolvido. Mais tranqüilo, saí para procurar um lugar onde pudesse comprar uma coca-cola. Logo na frente do bar, um trailer de cachorro-quente me surgiu como um oásis. Pedi minha coca-cola, conversei um pouco com os presentes sobre assalto a banco e notas marcadas (eu fico interativo quando estou nervoso, mesmo com o menos recomendável dos públicos), e voltei ao meu posto ao lado do pobre carro manquitola.
Meus amigos, levou menos de cinco minutos. Olhando para o carro ali tão vulnerável, já com os apetrechos jogados de volta no porta-malas, tive uma revelação: se erguido no ar, o pneu girava um pouco a cada golpe; firmemente plantado no chão, ofereceria um ponto de apoio muito melhor à chave de roda. Senti meu QI aumentar uns cinco pontos, abri novamente o porta-malas e dei início à Opareção Troca de Pneu 2.0.
Mais inteligente como estava, deduzi rapidamente que retirar todos os parafusos poderia trazer efeitos indesejados, como receber o peso do carro sobre o pé. Então apenas afrouxei os danados, agora com a maior facilidade, e levantei novamente o carro. Depois disso foi só terminar de desrosquear os parafusos e tirar o pneu furado. Ao tentar botar o estepe, porém, outro problema foi apresentado à minha poderosíssima inteligência: o eixo, ou seja lá como for o nome daquela porra onde se enfia o pneu, estava muito baixo para o encaixe. "Este pneu é muito grande", pensei eu. Botei o danado ao lado de seu colega ferido, e de fato ele estava uns 10 centímetros maior. E eis que o gênio se manifesta novamente: os dois eram do mesmo tamanho, só que um estava furado e o outro não. Bastaria subir o carro um pouco mais e estaria feito. Pronto: com essa genial dedução final, terminei a troca do pneu, liguei para o seguro cancelando o chamado (atendido por uma moça, dessa vez) e voltei para casa.
A lição que aprendi e agora repasso a vocês: o bom mesmo é nascer mulher. Não que essa lição vá me servir para alguma coisa.

http://www.jesusmechicoteia.com.br/