30.9.04

Uma grande invenção

Dia desses, estava eu na casa da minha mãe perto da hora do almoço quando o telefone tocou. Meu pai, com sua voz saída diretamente de uma tumba qualquer, atendeu (não imaginem nenhuma delicadeza nas linhas a seguir):

”Aloooou. Quer falar com quem? Eduardo? (meu irmão) O Eduardo está trabalhando, quem é que quer falar com ele? (engrossando ainda mais a voz) PRISCILA DA ONDE E SOBRE QUAL ASSUNTO??? (veias saltando pelo rosto, já aos brados) NÃO, ELE NÃO ESTÁ E ELE NÃO TEM NADA COM O UNIBANCO, ELE JÁ TEM OUTRO BANCO E NÃO ESTÁ INTERESSADO EM PORQUEIRA NENHUMA DE UNIBANCO!!! E EU NÃO ESTOU AUTORIZADO A DAR O TELEFONE DO TRABALHO DELE!!!”

Pum. Telefone devidamente enfiado no gancho com toda a fúria do planeta. Ele vira-se para mim, que estou de olhos esbugalhados de pavor, e explica, ainda revoltado:

“É essa merda o dia inteiro, tudo o que é banco, pra mim, pro seu irmão, pra sua mãe, pra sua irmã, o dia inteiro! Aqui não tem essa não!”

Meu pai é aposentado. Passa dias, noites e madrugadas inteiras sentado no mesmo lugar do sofá, que já tem o buraco marcado com a bunda dele, divisórias e tudo. Na mesinha de canto logo ao lado, dois telefones sem fio, com as duas linhas da casa. Que tocam o dia todo, claro. E eis que o aposentado, que achou que teria uma vida inteira de sossego pela frente para ler o seu jornalzinho em paz, virou telefonista.

E ali, olhando para ele, para aquele talento em estado bruto, criei uma nova profissão, atualmente exercida somente pelo meu pai, mas que, aposto, em breve vai virar uma coqueluche: o atendente de atendente de telemarketing.

“Pai, seguinte, que tal ganhar um dinheirinho fácil sem fazer muito esforço?”

“Hein?”

“Estou te propondo um trabalho. Você vai ser meu atendente de atendente de telemarketing.”

“Como assim?”

“Simples: das 9 às 18h você passa a ficar sentado no sofá da minha casa, atendendo a todos os telefonemas. Com carta branca para se livrar das atendentes de telemarketing insistentes.

“E o salário?”

“Pago tudo em balas de tamarindo.”

“Nada feito, aqui na casa da sua mãe tem mingau de cremogema.”

Depois de negociarmos por meia hora, não houve jeito: meu pai se convenceu de que ele estava muito bem empregado, obrigado. E eu? Bem, eu precisava de um atendente de atendente de telemarketing. Então, coloquei um anúncio no jornalzinho da Urca:

“Procura-se aposentado rabugento, mal-humorado e sem um pingo de delicadeza para exercer cargo de confiança em empresa doméstica.”

Dois dias depois, o telefone tocou.

“Alô.”

“É daí que estão procurando um aposentado para trabalhar?”

“É sim, o senhor se enquadra nos pré-requisitos?”

“Escute aqui, pegue esses esses seus pré-requisitos e enfie no...”

“Ótimo, o trabalho é seu.”

Seu Oscar apareceu aqui em casa para seu primeiro dia de trabalho ontem. Segunda-feira, dia de começos. Ou, como diria seu Oscar, segunda-feira de cu é rola. Um doce de velhinho.

Saí para trabalhar tranqüila, com a certeza de que meus telefonemas estariam, dali em diante, recebendo a devida atenção. Veremos.

Epinion - mau humor, mentiras e fé patológica

29.9.04

Persela, a vesga,
uma novela capaz de prender sua buzanfa na poltrona até que nossas mensagens subliminares terminem

capítulo trêzimo

Você viu no último capítulo: você não viu nada porque tinha acabado a luz.

Capítulo de hoje:

Persela descobre que está grávida:

- Mas como? Eu sou virgem!

Tony Johnny reconhece a criança para evitar falação. Jamile Cristina revolta-se, coloca um piercing na língua e pinta o cabelo de rosa choque. Pega o uniforme da escola e amarra a camisa deixando aparecer uma tatuagem do Marilyn Manson ao lado do umbigo.

Manoel Alberto arranca os cabelos e deserda Persela. Valquíria Clara tem uma crise de choro. Corta de repente para Gabriel Monteiro dando uma gargalhada malvada. Volta para Persela, andando pelas ruas desolada, triste, deprimida e um pouco aborrecida. Tony Johnny a procura em seu patinete por todo lado, mas não a encontra.

O cara malvado da escola, Péricles Ariosvaldo, curte de montes o visual de Jamile Cristina. Ela sai pra dar um rolê na moto possante dele, e madre Teodora, vendo aquilo, leva as mãos à cabeça de forma teatral.

Por fim, aparece o Dr. Kildare com ar preocupado no meio da rua. Persela o vê, deitada sob um papelão que um mendigo lhe descolou. Ela se levanta e pergunta:

- Dr. por que tanta preocupação, o que aconteceu, o que o senhor faz aqui?
- Ah, oi, Persela. Não é nada, eu estava preocupado é com os nematelmintos tuberculosos da Antártida Setentrional. Se você visse todas aquelas criaturas sofrendo... Bom, a propósito, refiz os exames e tenho uma coisa para te dizer. Você não está grávida!
- Oh, doutor! - Persela arregala os olhos, cada um para um lado. - Sim. Descobri que sua gravidez era...

Sobe a música, momentos de tensão. Corta para o engimático personagem sem nome. Ele agora está passando em frente a uma floricultura quando uma senhora deixa cair a sombrinha. Ele se abaixa de forma enigmática e pega a sombrinha para a senhora. Volta para o Dr.:

- Eu quero dizer, Persela, que sua gravidez era piscológica!

Tudo volta ao normal. Tony Johnny retira a proposta de casamento, a contragosto, Jamile tira o piercing, pinta o cabelo e cobre o umbigo, além de dar um fora no Péricles, mas Manoel Alberto não aceita mais Persela em casa.

- Só nessas horas sem você em casa eu percebi, Persela, que você é um atraso na nossa vida! Eu não consigo emprego por sua causa! Você atrai má sorte para nós! Adeus, Persela! Adeus para sempre!

Valquíria Clara tem uma crise de choro.

NO PRÓXIMO CAPÍTULO: Finalmente aparece a Bozolina! Papal Informal morre de hipertensão. Silvio Santos reconhece que usa peruca. Hebe Camargo trava numa apresentação, solta faíscas e todos vêm que há trinta anos ela não passa de um robô. Arnold Schwarzenegger revela sua plataforma política: "Megamass na faixa para a população carente que fala com sotaque".

ERNESTINHO E SUAS MULATAS BESUNTADAS

Mutumbilelê - uma odiosa lenda à brasileira / Dennis D.

Sempre que chovia na floresta, Mutumbilelê, o passarinho da cabeça grande, ficava escondido nos afundados do cipó-titica. "Ai, que medo!", ele pensava, "Ai, ai, que medo da Mamãe Naná!".

Toda ave da espécie de Mutumbilelê, assim que lhe crescem as penas negras da cauda - e antes mesmo de se aventurar no primeiro vôo curto, entre os galhos da majagumbeira florida - recebe a grave advertência de Aimacurum-nini, o espírito protetor dos bichos emplumados: "Quando o mijo cristalino de Tupã-tutu cai em forma de chuvarada, Mamãe Naná, a deusa das poças d'água, aparece em toda parte. Nenhum passarinho de cabeça grande deve olhar nos olhos molhados de Mamãe Naná... se quiser continuar vivo e criar família."

Mutumbilelê queria continuar vivo, bem vivo, e criar família numerosa, por isso temia os dias em que Tupã-tutu mijava na floresta. Entretanto, esse temor de Mutumbilelê não lhe amainava a curiosidade. "Como serão os olhos molhados de Mamãe Naná?" - ele se perguntava, cada vez mais intrigado - "Serão belos como as flores azuis da majagumbeira ou assustadores como os olhos amarelos da impiedosa cobra corutuarana-do-rabo-fino?"

Num dia de chuvarada, bem ao final do verão, Mutumbilelê foi vencido pela própria curiosidade. Emergiu dos afundados do cipó-titica e pôs-se a procurar os olhos molhados de Mamãe Naná. Logo adiante, o passarinho da cabeça grande se deparou com uma poça d'água redonda e rasa.

"É ela, sim, é ela!", exclamou em piados tremidos, misturando medo com valentia e prazer. Passinhos curtos, cuidadosos, foi entrando na poça até chegar ao centro. Parou. Olhou para baixo a buscar os olhos de Mamãe Naná, mas o que viu? Nada! Só havia água de chuva, simples, boba, sem graça, molhada como a água do riachinho ou da lagoinha. "Mamãe Naná? Pois sim!"

Desencantou-se o Mutumbilelê. Soltou uma titica verdolenga e resolveu mudar de religião.

Dennis D.

28.9.04

Engasgos

.: Param-pam. Param-pam. Pa-pa-pa-pam-pa-ram-pa-pam.
.: Ainda não inventaram um mecanismo decente de transcrição musical. Partituras são complexas e ineficientes. E chatas. E bobas e feias.
.: Nublo. Nublos. Bento louco. Lluba.
.: Voltando ao caldo e à inépcia de montar frases. Abu. Gagaga.
.: Yeow!
.: Fuém fóin fã fã faram.
.: Hamletis, de William Shakespeare

(resumido e reescrito por Mussum)
Fantamis: Buuuuss!
Hamletis: Papais?!
Fantamis: Sim, filhus. Teu tius e tua mãezis não vale nadis.
Hamletis: Estou alucinandis? Será verdadis ou não serázis? Devo ser vingativus ou não ser? Vou fingir de doidis pra ver o que acontecis...
Morris todo mundis.
FINZIS

. : B e r e t e a n d o , ano 1 : .

Quatro dias enfiado numa pretinha sueca 

Feriado no Rio. Cidade suja e em estado de sítio, mas os cariocas fazem cara de paisagem para a violência como fizeram para a ditadura. É hereditário. Me resta o prazer de rever os olhos azuis/verdes que eu adoro, embora eu ache que ela seja ainda mais instigante fora dessa confraria de late teens que se reúne para falar de prole.

Chega de reclamar, afinal quem esta apaixonado não pode ficar se lamentando pelos cantos. E essa paixão que me proporcionou tanto prazer foi uma pretinha sueca com quem passei o final de semana. Grande, mas não muito, bonita demais, estilosa, muito sexy mesmo. Bebe bem a moça. O curioso é que era uma sueca preta. Forte, mas atlética. E já estou com saudade, vamos nos despedir hoje. E ela ainda gostou da minha filha, o que a torna uma figura especial na minha vida. Essa sueca é a Volvo V50. Um brinquedo de R$176.000,00 que me injetou doses cavalares de endorfina misturada com serotonina.

O acabamento é impecável, o console central é a peça mais bonita e funcional hoje em produção, o conforto para todos os passageiros é superb e as cadeirinhas infantis embutidas no assento traseiro, um sucesso com a filhota.

(…)

Passamos 1200 km juntos, e descobri uma brincadeira muito divertida. Na estrada, a 140 no cruise control, incautos ao volante de Audis A3 colam na sua traseira e piscam os faróis. Na certa eles esperam que o tiozinho na perua vá colocar a seta e ir para a direita. Não. Smash the right pedal on the floor e coloque no rosto o seu melhor sorriso. É essa imagem que vai ficar registrada na memória do ex-perseguidor. Os 220 cv da V50 são tão bem balanceados que você esquece que esta num carro com tração dianteira.

(…)

Na volta para o São Paulo, estrada vazia, deu para fazer várias passagens a 215/220 km/h. Controle total. Frenagem espetacular. E agora o jogo gostoso de irritar donos de A3 Turbo também funcionava com donos de Golf e outras coisinhas tunadas. E eu com minha pretinha stealth, carro do tio...

Muitos sorrisos e varias passagens deliciosas com o turbo soprando me entregaram ao final da Rodovia Ayrton Senna.

Quase chegando à marginal, mais um par de faróis de luz branca voltou a me provocar. Ok. Mas havia algo de estranho no ar. Eram 02h10 da manhã, a silhueta do carro era baixa e o som...nossa...a música de um V8 com 400cv. Ferrari 360 Modena. Visão mágica coroando o final de uma viagem ótima. Oportunidade única. Quando ele colou, eu acelerei. Nos regimes médios, o turbo cheio, deu para fugir da 360. O piso da marginal também era melhor negociado pela suspensão da Volvo.

Mas o cara provou que era um dono de Ferrari. Partiu para a briga. Não iria tomar pau de perua. Os dois trafegando na Marginal a 210km/h. Redução para a Ponte das Bandeiras. O câmbio automático segurando o ímpeto do câmbio F1 sendo usado na ponta dos dedos.

Cheguei primeiro à Av.Tiradentes. Dois faróis na frente. No terceiro, o rugido da fera. 8000 rpm gritando na madrugada. Partimos juntos, mas a diferença de 180cv apareceu. Minha última visão foi a traseira da 360 gritando sua música metálica no Túnel da 23. Eu estava a 215 km/h. Ele eu não sei. Mas me senti em Mônaco.

Fui para a casa com um sorriso que nunca mais vai me largar. É o mesmo sorriso de quem já nadou com um great white, de quem já viu uma jubarte e sua cria nadando, de quem já viu um Ovni. Um momento único e especial, coroando essa jornada deliciosa com a minha pretinha sueca.

L'ENCRE INVISIBLE

AO ESTILO DE FERNANDO PESSOA, SE ESTE FOSSE CHEGADO

Me perguntam se eu realmente acredito em astrologia. Tenho a declarar que, disparado, conhecer rudimentos de astrologia me permitiu comer muito mais gente do que, por exemplo, conhecer rudimentos de cálculo diferencial: num bastante breve período descobri que meninas não se interessavam por quimeras exatas.

Portanto, afirmo que acredito muito mais na astrologia do que no cálculo diferencial.

Padre Levedo

eu me candidato

Procurava um tema de romance e encontrei na FNAC o livro do Garry Mulholland This Is Uncool: The 500 Greatest Singles Since Punk and Disco.

Havia um tipo de estagnação nos anos 80 que não existe mais. Havia um clima e uma alegria e uma tristeza que não existem mais.

E havia raiva e fúria.

Não foram bons os anos 80, estive lá pela maior parte dos anos. É como uma festa, a companhia era ruim, nada era divertido, mas a música prestava.

Não vou escrever que me sinto tecnicamente morto. Ao contrário, sinto que o resto da humanidade morreu. Ou veio de outro planeta, são de outra espécie. Onde está a alma das gentes?

É estranho ter idade para perceber que um mundo não existe mais. Os anos 80 começaram por volta de 76 e terminaram em 92, ainda que estivesse nas últimas já em 89.

Há algum bom romance que fale dos anos 80?

saudade do presidente Figueiredo

27.9.04

ENTRE A DESCULPA E O PERDÃO

Eu já pedi tantas desculpas. Na infância, os pais, a professora e os irmãos forçavam desculpas a toda hora. Não compreendia como uma palavra me liberava a dizer palavrão depois. Uma palavra me salvava de crespar no castigo. Uma palavra e estava limpo novamente, de banho tomado na linguagem. Não era fácil dizê-la, algo como esmolar. Nunca o foi, pois o rosto de quem a espera lembra o último camafeu em uma bandeja. Eu a falava para dentro, com beiço, esperando o anúncio de um abraço ou beijo para aliviar a carga dramática. Se as desculpas são difíceis, pedir perdão é um tormento. Como diferenciar o perdão da desculpa, qual é o momento adequado para um e outro? Com perdão, os olhos devem estar fechados e a boca atenta como um ouvido. No perdão, percebo que viver não nos dá tudo, muitas vezes nos tira. Que uma voz não é sorte, que não é para ser temida, que até Deus fica nervoso durante a missa, que a morte é apenas o desequilíbrio entre o medo e o desejo, que até a humildade tem pressa. No perdão, a lealdade não precisa perguntar e a luz que me deixa ver é também paisagem. Com o perdão, percebo que se a mulher com que vivo e amo não existisse, ainda a amaria igual, amaria sua ausência com ritual e zelo, em cada objeto da casa. Que uma ave não canta a mesma música, sua memória é a árvore. A ave é a mão musicada da árvore. Perdoar é se dar conta de que o amor protege mais do que evita, que nem o mar encontrou sua transparência e o vento não chega porque se esqueceu em seu corpo. Perdoar é escoar, desculpa é recuo. Como mexer o açúcar com os dedos é diferente de mexer o sal. Perdoar é reparar que não olho tanto minha mulher para assim imaginá-la e não envelhecê-la. Que o meu melhor tempo é o tempo alheio. Que o ritmo de meus passos obedece o espaço exíguo de meu quarto. Que há lembranças que somente podem ser dançadas, nunca repetidas. Desculpas acontece quando queremos nos libertar do outro, nos redimir. Perdão não se importa com a projeção, é libertação de si próprio.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

Quando as portas dos desesperados se abrirem

O senhor do escuro aparecerá como é: no finalzinho, e comendo todo mundo.

Devo dizer que não vi grandes vantagem no reinado de Aragorn; mas quem sou eu para discutir história, que mal entendo potenciação -- o suficiente, porém, para não ser pego por analfabetismos ou truques linguísticos baratos.

Meus amigos, que não entendem nem de potenciação, quanto mais de logaritmo ou taxas de juros, vivem a dizer bobagem sobre estado forte, estado mínimo, estado de sítio, estado não-sei-quê. Só burrada.

Se querem saber, pra mim o estado forte do comunismo é uma falácia. Não tem nada de forte, na verdade ele é grande e gordo, veste um daqueles maiôs vermelhos do telecatch, e se der bobeira ele se atira em cima de você lá das cordas.

E o tal do estado mínimo, na cabeça dos liberais é o lutador sarado, magro porém forte, ágil quando necessário; mas o estado mínimo não passa de um nanico esquálido e com umas gordurinhas localizadas. Se pintar o cabelo de verde, fica igual àqueles oompa-loompas. Com a desvatagem de que, se aparecer um outro por perto, em vez de ajudar, só vai tocar o barco pra trás.

O fascismo é a cara de Mussolini. Anarquia me lembra Adam West dançando, vestido de homem-morcego. O Rei Arthur e a terra eram um. Luís XIV também, sobretudo depois que resolveu seguir os conselhos dos médicos e parou sete palmos abaixo da superfície. Ecologistas, hippies e demais ativistas, eu não vou comentar.

E uma velha piada, de e-mails repassados que só agora leio.

Teoria do Estado, evolução histórica:

- O Estado sou eu. (Luís XIV)

- O Estado somos nós. (Lênin)

- O Estado somos eu. (presidente Lula)

dies iræ

23.9.04

Quando se fala de literatura, a Academia sempre chega depois, pois isso faz parte de sua natureza. Não são clínicos, são legistas. Como em qualquer outra coisa, e às vezes é preciso chamar a atenção para o óbvio, isso traz vantagens e desvantagens.

Não me parece adequado equiparar transgressão à ditadura dos sentidos e do imediato. Isso seria trocar uma tirania por outra. Prefiro pensar em nem tanto, nem tão pouco. Saber o que se está fazendo me parece essencial: sem o excesso anal-retentivo de controle que engessa a criatividade, nem a falta absoluta de controle que engendra o niilismo. Acredito que a chave do humano na literatura está no equilíbrio entre a assepsia do objetivo e o lodaçal do subjetivo, que implica em saber quando e o quê transgredir.

Não abraçar o cânone por completo, o que seria pura submissão, nem rejeitá-lo completamente, o que seria infantil. Conhecê-lo, antes de tudo. Tirar dele o que tem de melhor, rejeitar o que não mais é adequado, e seguir em frente. Ninguém escreve sozinho.

PERHAPPINESS

No Morrão

Aproveitei minha hora do almoço para subir ao Morrão. Engraçado: tanto tempo sem mais nada para fazer, e nunca me ocorrera subir até lá. É verdade que a total vadiagem me constrangia, impedindo-me de desfrutar totalmente do ócio. Mas agora trabalho, passo o tempo lidando com grandes questões, então na hora do almoço eu tenho o direito de ser totalmente vagabundo. Assim sendo, subi ao Morrão.
O Morrão fica na rua de cima, e não se chama Morrão, é claro: chama-se Praça Maestro Assis Republicano. Nome bonito para um lugar que é só uma elevação com uma rua embaixo, uma rua em cima e uma escada no meio para unir as duas; enfim, um morrão, como bem o chamamos por aqui. Subi, pois, o escadão imenso ("imenso" é um pouco demais, mas eu subi de dois em dois degraus e ao chegar lá em cima mal me agüentava em pé) e me sentei num dos bancos, um livro nas mãos, para passar meia horinha de ócio.
Quando eu e meus irmãos éramos crianças, vez em quando meu pai subia conosco ao morrão. Lá de cima mostrava os pontos interessantes daqui de perto (a escola, a fábrica da Seven Boys, a igreja) e lá de longe (o prédio do Banespa, as antenas da Paulista). Chegando lá em cima hoje, me dei conta de que era minha primeira visita ao Morrão desde aquela época. Está diferente: a rua foi asfaltada há anos, e agora há bancos em cima e um playground e um campinho de futebol lá embaixo, enfim, Dona Marta resolveu transformar o Morrão em praça de verdade.
Eu sei, eu sei: este já é o terceiro parágrafo e a história ainda não começou. Eu tenho esse problema, sei muito bem. Mas prometo que a história começa no próximo parágrafo. Querem ver?
Estava eu lá meio lendo, meio olhando a paisagem, quando um menino de uns cinco anos veio se aproximando. Trazia nas mãos uma bola verde, grande, de borracha.
(Viram? Começou a história).
O menino veio vindo e eu já sabia que ia falar comigo. Crianças sempre falam comigo.
— Eu sei chutar essa bola, sabia?
— É mesmo?
— É!
— Sabe nada...
— Sei sim, ô!
— Quero ver — botei o livro de lado. — Só não vá chutar a bola lá pra baixo.
Todo mundo conhece o efeito de um "não" sobre a mente infantil: foi justamente lá pra baixo que ele chutou a bola.
— Te avisei... E agora, hein?
— Hum... Agora eu vou chamar meu pai pra ir lá pegar.
Saiu correndo para casa, e eu fiquei rindo sozinho da esperteza do moleque. Voltou acompanhado da irmã pouco mais velha, que se dispôs a descer o escadão para buscar a bola do caçula. Já ia começar a descer quando aquela voz grave, meio rouca, chamou:
— ÁGATA! Aonde você vai?
Era a mãe dos dois. Ah, a mãe dos dois! Morena alta enfiada num shortinho branco que contrastava com as coxas bronzeadas e mais do que surgeria o formato e firmeza da bunda que lutava por esconder. Os peitinhos miúdos estavam soltos dentro de um top que era pouco mais que uma fita branca envolvendo-lhe o busto, como se ela estivesse embrulhada para presente. Ante aquela visão eu tomei a atitude de sempre: voltei a enfiar o nariz no livro, encabuladíssimo pela presença da mãe das crianças.
Ao final de uma pequena discussão, a morena autorizou a filha mais velha a descer. Então ficou em pé perto de mim, de costas, orientando a menina lá embaixo. Aquela bunda atraía meus olhos, e eu não conseguia pensar em nada para falar com a morena. Nem um "Crianças!", tão propício à ocasião, nada. Ela acabou voltando para dentro. Fiquei por ali ainda um tempo, entretido com o menino que agora me chamava de amigo e me mostrava como conseguia jogar pedras para acertar as pessoas lá embaixo. Eu tinha que voltar ao trabalho, porém, então me despedi dele e desci o escadão.
Não acredito até agora que tão perto de minha casa mora a mulher que anda seminua. Amanhã eu volto.



— Sexista!
— Hum?
— Sexista! CHAUVINISTA!
— Que foi que eu fiz, minha senhora?
— É só assim que você sabe descrever uma mulher? Peitos, bunda, mais nada?
— Peraí, olha a injustiça! Falei em coxas também, e até dei um jeito de enfiar um "busto" no texto.
— PORCO! Você acha que aquela mãe de família é um pedaço de carne, não é?
— É, é. Mas olha: é um BAITA PEDAÇÃO...


Jesus, me chicoteia!

Hoje o menino — chama-se Rubens — veio me mostrar sua bicicleta. Disse que deu cinco reais "pro ôme", e ele lhe deu a bike. Estava toda quebrada, o pai consertou. Sentada no banco ao lado estava uma senhora de uns setenta anos. Claro que a velha puxou assunto comigo, velhos gostam de mim:
— Esse menino é doido! Olha como corre com a bicicleta, é perigoso ser atropelado, ou cair lá embaixo. A mãe não cuida, tá lá dentro, deitada. Só véve deitada.
— A senhora é avó dele?
— Sou sim.
— E a mãe dele é sua filha?
— É não. — aqui ela tapou a boca com a mão esquerda para dizer em tom de confidência: — Ela é amigada. Mora com... — Levantou dois dedos da outra mão. Entendi que a morena tem dois homens. Achei justo: queria ver quem é que dava conta daquilo tudo sozinho.
— Ah...
— Então eu fico aqui cuidando dos meninos... Ó lá a irmã dele chegando. Tadinhas dessas crianças...
Nisso o moleque já estava dando voltas de bicicleta pela calçada. Enquanto ele pedalava, parando às vezes para me explicar por que sua bicicleta é tão veloz, a avó continuava:
— Um dia eu ainda dou uma paulada na canela dela, quebro-lhe a perna.
— Sei... — assustado.
O garoto perdeu o controle e bateu num arbusto florido. Chorou um pouco, depois veio trazendo uma flor feia.
— É pra minha mãe.
— Essa aí tá murcha — disse a avó, levantando-se para pegar outra. Enquanto escolhia uma flor mais vistosa, continuou: — Quando eles vieram pra cá fizeram de tudo pra gente ir embora. Mas eu não vou, ora! Aqui é minha casa. Sabe? Logo que eles chegaram esse homem que mora com ela quis bater no meu marido.
— Nossa.
— Pois é. Mas eu não deixei. Deixei nada! E venha ele me encher o saco pra ver o que acontece. Pego assim — fez o gesto de quem destronca a cabeça de um frango — torço o pescoço dele e jogo aqui do barranco.
— Hum.
— Eu não sou daqui, sabe? Sou daqui não. Sou de Guaratinguetá. Vixe, ali é o povo mais ruim que existe, o mais ruim! E eu nasci lá. Aprendi a ser assim também, né?
— Pois é.
— Torço o pescoço e jogo do barranco. Vem ele mexer comigo, quero ver!
— É... Olha, eu vou ali. Preciso trabalhar.
— Ah. Trabalha onde?
— Trabalho em casa.
— Ah, assim que é bom. Vá com Deus, meu filho.
— A-Amém.
Voltei pra casa com medo da velha. Mas amanhã eu volto, é claro.

Ainda no Jesus, me chicoteia!

22.9.04

detalhes tão pequenos de mim mesma

Eu adoro aquele iogurte activia, sabem? É beeem gostoso e, ao que parece, realmente funciona.

O problema é que, com essa porcaria de comercial que eles tão fazendo, eu realmente me sinto constrangida ao compartilhar meus problemas intestinais com a caixa do supermercado. Acho que realmente eu não preciso passar por isso. E o pior é que nem dá pra disfarçar. Não dá pra pedir pro iogurte fazer cara de alicci, nem pra escondê-lo na alface. Acho constrangedor.

E lembro sempre da vez que uma amiga minha (digo o milagre, mas não o santo) foi à farmácia comprar OB. Ela pegou um tamanho mini, ao que a caixa da farmácia, com uma cara de deixa-eu-te-contar-uma-coisa, falou "É, agora à pouco uma moça comprou um tamanho super. Um suuuuper." Ó se pode.

perolada - eu pitaqueio, tu pitaqueias, eles pitaqueiam

detalhes tão pequenos de mim mesma

Eu adoro aquele iogurte activia, sabem? É beeem gostoso e, ao que parece, realmente funciona.

O problema é que, com essa porcaria de comercial que eles tão fazendo, eu realmente me sinto constrangida ao compartilhar meus problemas intestinais com a caixa do supermercado. Acho que realmente eu não preciso passar por isso. E o pior é que nem dá pra disfarçar. Não dá pra pedir pro iogurte fazer cara de alicci, nem pra escondê-lo na alface. Acho constrangedor.

E lembro sempre da vez que uma amiga minha (digo o milagre, mas não o santo) foi à farmácia comprar OB. Ela pegou um tamanho mini, ao que a caixa da farmácia, com uma cara de deixa-eu-te-contar-uma-coisa, falou "É, agora à pouco uma moça comprou um tamanho super. Um suuuuper." Ó se pode.

perolada - eu pitaqueio, tu pitaqueias, eles pitaqueiam

21.9.04

"A gente tá indo, mas pelo menos a gente tá indo na ordem." Nunca vou me esquecer de quando o Fernando disse isso, numa festa de natal - alguns anos depois que o meu avô morreu - a propósito de um comentário de que a família estava encolhendo. Minha tia-avó (mãe dele) riu muito e respondeu: "vira essa boca para lá, Fernando, que a próxima sou eu." Não foi.

A Caverna da Ogra

PLAY THAT FUNKY MUSIC 

Há madrugadas, noites ou mesmo tardes em que eu deveria ter ouvido os conselhos de papai e aprendido a tocar guitarra, de preferência com a pose certa, o que deve ser a parte mais difícil. "Mas onde estão as negas d'antanho?", pergunto-me: já abandonei uma profissão inteira, a advocacia, simplesmente por gostar de subverter os clichês abreviativos do ramo, escrevendo coisas como "a b. sentença", "o t. acórdão", "o f. magistrado a quo". As pessoas ficavam ofendidas ao ler essas expressões, embora eu as considerasse uma obra aberta. Alimentar mistérios confere poder psicológico, ainda que em prejuízo próprio: "este mito, esta lenda, este Zippo". Não supreenderei ninguém, portanto, se disser que o número de causas que venci não foi exatamente portentoso.

Um dos problemas é que todos os músicos do país são obrigados, de dois em dois anos, a compor jingles para campanhas políticas, sob pena de cassação de licença. As melodias e arranjos são idênticos aos dos hinos das igrejas evangélicas for dummies; as letras também, bastando substituir "Jesus" pelo nome do candidato e atribuir-lhe algumas qualidades redentoras a mais (se eu soubesse dizer "paralelismo sígnico" sem pensar em sacanagem, defenderia tese de doutorado a respeito). Além disso, o mercado para bandas cover masculinas das Go-Go's não parece muito promissor, apesar da nostalgia oitentista. O melhor dos anos 80, afirmo com a autoridade de quem esteve lá, é que o Brasil ainda era uma espécie de Creuza (com z) e morava no quarto dos fundos mental: ninguém que se prezasse fazia idéia da existência da buchada de bode ou da cerâmica marajoara. Mas as coisas boas se recusam a voltar.

Contos Licenciosos

Enquanto isso na Terra-Média

Frodo: Eu levarei o anel para Mordor. Embora... eu não saiba o caminho.

Gandalf: Eu o ajudarei com este fardo, Frodo, enquanto tiver de carregá-lo.

Aragorn: Se por minha vida ou morte, puder protegê-lo, eu o farei. Você tem minha espada.

Legolas: E tem o meu alisante.

Gimli: E a minha barba.

Valdomir: E meus votos de toda a sorte do mundo.

dies iræ

Um amor de bordas e espaços abertos, um amor de azuis e horizontes. Teu amor me chegou largo e amplo como não costumam ser os amores entre meus braços. Não consigo abarcar o tamanho do teu dorso, não consigo acompanhar a amplitude do teu passo. Tenho que aprender imensidades e reler a vida traduzida em oceanos, em céu de deserto, em infinitudes, em grandes despenhadeiros onde a minha voz ecoa sozinha. Logo eu, que aprendi guardar momentos em porta-jóias, que amei sempre em relicário de dias, que tenho ouvidos para murmúrios de água em ânforas secretas. Desvisto minhas miudezas para esperar um abraço em tuas planícies.

Não Discuto

18.9.04

DE PÉS DADOS

Eu sei, eu sei, andar de mãos dadas é como fechar uma rua. Ter uma rua só para ela. O corpo estala em estar junto. Ervas que se trançam nas grades, fazendo que a janela pareça aberta mesmo quando lacrada. Dar as mãos já é suar a dois, transpirar a dois, respirar a dois. É levantar um corpo da grama para deitá-lo na boca. Eu sei, eu sei, mas melhor do que as mãos entrelaçadas é andar de pés dados de noite. De leve, empinar o peito do pé na sola feminina, ensolarada, como se fosse um outro lençol no lençol. Um pão equilibrando a mesa. Acariciar o batimento dos dedos, o atalho das unhas, percorrer a pele, ciscar as marcas das sandálias, chegar como um assobio inseguro. Tudo ali para calçar: o canto líquido, as amêndoas, a beleza discreta. Dormir de pés dados é se espreguiçar para dormir ainda mais.

Fabricio Carpinejar

17.9.04

Manuscritos de Omar, o Morto

GÓLGOTA BLUES

(Testado e aprovado pelo scholar Marco Aurélio)

1 Então o nazareno, tendo subido ao Gólgota, deixou cair ali o pesado madeiro. 2 E eis que em seguida pôs a mão no ombro do centurião romano, assim dizendo: "Encomenda entregue. A paz esteja convosco." 3 E após estas palavras o nazareno atravessou a multidão, ante seus atônitos discípulos, aos quais murmurou, em voz baixa: "Simulai naturalidade, bando de incréus." 4 Ora, o centurião romano pegou o nazareno pelas vestes e o arrastou de volta ao madeiro. 5 E o nazareno bradava, enquanto era arrastado: "Não se faz mister assinar nota fiscal, é entrega sem ônus tributário!" 6 E enquanto era deitado no madeiro, o nazareno bradou aos céus: "Devo ter jogado pedra na cruz!" 7 E quando o verdugo foi fincar os pregos o nazareno manteve as mãos fechadas, murmurando: "Estou convosco e não abro!" 8 E, tendo erguido o madeiro, o centurião ofereceu ao nazareno um cálice com mirra, para mitigar a dor. 9 O nazareno provou, cuspiu e clamou: "Devo ter bebido vinagre no cálice sagrado!" 10 E na hora sexta o nazareno olhou os céus e lamuriou-se: "Por que me desamparaste?" 11 E nisso uma voz vinda dos céus falou como dez mil trovões: "Tens trinta e três anos e até hoje moras com tua mãe - ainda querias que eu não te cortasse a mesada?" 12 Porém a mesma voz dos céus, após uma breve pausa, prosseguiu: "Um momento - não és Yeshua, o carpinteiro?" 13 E o nazareno, exangue, respondeu: "Não, sou Yehuda, o coletor de impostos." 14 A voz nos céus assim então bradou: "Pelas doze tribos de Israel! Confundi ano sabático com ano fiscal! Perdoai, eu não soube o que fiz." 15 E a terra tremeu.

na Bíblia do Ao Mirante, Nelson!

É nada

Ela o pegou com um monte de revistas de musculação espalhadas em leque no sofá. Ele nem ficou embaraçado; só puxou pelas mãos dela e a fez sentar.

-Escuta.
-Diz.
-Eu sou gay.

Ela olhou pra ele um segundo e meio e disse:

-É nada.
-Eu estou dizendo...
-Pois sim, que eu conheço você. É que nem aquela história do trenzinho. Cismou e cismou que queria uma sala só pro trenzinho, e agora ele está lá pegando pó e ocupando um espaço danado. Brincou com o trenzinho essa semana? Diz: brincou?
-É diferente dessa vez, Clara.
-É nada. É que nem o trenzinho. Não dou uma semana...

Uma semana depois ele estava no sofá vendo um documentário sobre uma mulher que passava a mão na barriga de tubarões pra fazer eles dormirem, e eles dormiam, quando a mulher voltou do trabalho e foi reclamando sem nem olhar pra ele:

-Olha aí. Falou falou que era gay, que queria ser gay, que ser gay era o máximo, e agora seus amigos gays estão aí jogados num canto um em cima do outro pegando pó. Posso pelo menos colocar tudo no quartinho do trem?

De fato, havia quatro gays pelados no chão pegando pó, um deles inclusive de bigode, em diferentes graus de inconsciência e abandono.

-Mas e se eu quiser usar o trenzinho?
-Nunca vai usar! – ela gritou, perdendo a paciência e começando a arrastar o primeiro gay pra sala do trenzinho, pelas botas. –Até parece que eu não te conheço... Ei, o que é isso?

Havia uma sela no sofá e uma revista de equitação na mesinha de centro.

-Decidi que vou fazer equitação – ele disse, já sabendo que ia ter que ouvir.
-Ai, Senhor! Dai-me paciência...
-Você nunca me apóia em nada, Clara.
-Não dou uma semana pra ter um monte de cavalo pegando pó na sala. Depois quem é que limpa o cocô? Quem é que leva pra passear?
-Por falar nisso, um gay fez cocô ali.
-Você levou eles pra passear? Não, né? Na hora de trazer pra casa, “Oooooh, eu sou gay, que maravilha ser gay”...

Brigavam muito, mas eram felizes. No aniversário de 40 anos de casamento ele tirou os cavalos, os gays, as orquídeas, os aquários, os hamsters, as estátuas africanas e as pranchas de surfe do quarto do trenzinho - e o trenzinho também, junto com a estação, a igrejinha e os hominhos - e mandou fazer um ateliê pra ela pintar os quadros dela.

Clara pinta até hoje, mal e alegremente, ouvindo Gene Krupa. Às vezes ela pára de pintar pra fingir que os pincéis são baquetas, e gotículas verde veronese caem em todas as direções no chão de madeira escura.

Alexandre Soares Silva

16.9.04

evite acidentes: faça de propósito [update]

Bebi sem camisinha, fumei sem cinto-de-segurança, não entreguei meu Winchester à campanha do desarmamento, dei pauladas nos nababos do caminho, não justifiquei minha ausência ao exame do toque, soneguei a descarga tributária e não pedi bula papal. Diria sim à Alca e ao capital estrangeiro se eles não tivessem me abandonado no altar. Recompensa: alguns Bloodhounds e infinitos Trojans. Ali Babá quarentenava os ladrões! Finda a temperança, queimei todos os botocudos, comendadores e metrossexuais. Exilio, Almirante Canning e silêncio. Meu reino! Um cavalo por meu reino! Baixar comodoros, eflúvios fora.

Mercuccio

COISAS QUE EU SEI
MAS NÃO LEMBRO SE
INVENTEI OU LI -

a) Anthony Burgess (autor de "Laranja Mecânica", só para ficar no livro mais conhecido, cuja notoriedade lhe incomodava e cuja adaptação para o cinema lhe deixou muito insatisfeito, por motivos até justos) e Glauber Rocha (aquele cineasta que apesar de ter feito alguns grandes filmes de fumeta só experimentou maconha pra socar umas bronhas) chegaram a escrever alguns roteiros juntos, mas nenhum produtor se interessou e a coisa ficou por isso mesmo. Não sei que fim levaram esses roteiros, e na real não sei se algum foi terminado. Mas que devem ser no mínimo curiosos, ah, isso devem. Principalmente se fossem dirigidos por, digamos, o Mojica.

b) No meio de um de seus incontáveis birinaites, o caolho-mor James Joyce resmungou uma teoria para Samuel Beckett: Adolf Hitler tinha deflagrado a Segunda Guerra Mundial apenas para desviar a atenção do público e impedir o sucesso total de sua "obra em andamento", que conhecemos hoje como "Finnegans Wake" e é um livrinho coisa fina de se abrir em qualquer página e ficar lendo em voz alta até ter um orgasmo. Depois largar, é claro, porque tudo nesse mundo tem que ter um limite. Não vou dizer o porquê, mas acreditem em mim. Também é legal ficar lendo as três últimas frases em conjunção com as primeiras, mas isso já é questão de gosto pessoal e não tem nada a ver com memória, então termino este item lembrando também que a filha louca do Joyce era apaixonada pelo Beckett e, não sendo correspondida, começou a odiar judeus e dizer que eles apodreciam o mundo y tal y cousa. Se vê que os Joyce eram realmente uma família afeita à paranóia. Gente boa, mas não exatamente por causa disso.

c) William Blake insistia em usar um chapéu vermelho que todos, incluindo sua fiel esposa, achavam ridículos. Ele achava legal, e isso é o que importava para ele e os outros que se danassem. Isso parece meio banal hoje em dia, mas não sei se também o era no século XVIII. Blake também gostava de garotinhas. Estou falando de garotinhas mesmo: onze, doze, treze anos. Isso parece meio banal hoje em dia, se a gente parar pra pensar, mas com certeza não é uma coisa que alguém assume assim sem mais nem menos. De repente era normal no século XVIII, pensando bem. As coisas são tão engraçadas, não são? Eu acho. E gosto muito do Blake, apesar de tudo.

d) Já que falei do Hitler ali em cima, vou poupar vocês de lembrar daquela história de que ele só tinha um testículo e por isso ficou um tantinho recalcado. Me parece bobagem. Tem também o papo de que ele não era muito chegado na cópula, que era vegetariano e que odiava cigarros. Depois que gentilmente suicidou a Eva Braun (ato deveras simbólico se você observar que ela tinha um nome judeu e um sobrenome alemão, dois povos que o austríaco sacaneou direitinho) e meteu uma bala nos cornos, o primeiro ato de muita gente naquele bunker fedido e escuro foi acender um cigarrinho. Mas longe do Goebbels, que na real eu não sei se a esta altura também já tinha suicidado a mulher e os filhos, mas que quase com certeza posso fofocar pra vocês que era bem chegado numa furunfada. Assim como o Göring e o Himmler, mas esse aqui me parecia mais pro lado "teu corpo é meu espelho e em ti navego", e com isso eu sinceramente não estou tentando insinuar nada. Galã mesmo era o Rommel, mas não lembro de historinha alguma sobre ele. Que envolva gatas quentes, isto é. Heh, parece piada sobre os Afrika Korps.

e) O poeta, cachaceiro, misticóide, filosofista e neurótico Fernando Pessoa, além de ser chegado num mapa astral, chegou a trocar algumas carta com o bon vivant, fudedeiro, enxadrista, macumbeiro, alpinista e (vá lá) poeta Aleister Crowley. Eles marcaram um encontro, que o Pessoa adiou várias vezes porque urano estava em conjunção com plutão na casa XII ou algo assim, mas acabou rolando. Quer dizer, rolou a intenção, mas o portuga ficou esperando com cara de ó porque o inglês desapareceu misteriosamente, deixando a polícia intrigada com seu paradeiro. Depois o carequinha reapareceu, mas nem ele nem o do bigodinho fizeram qualquer comentário sobre o assunto. RPGistas. Se não me engano, o dia em que isso aconteceu estava deveras brumoso, o que seria tão clichê que tem tudo para ser factual. Coisa de quem poeteia.

failbetter.

15.9.04

porque a ficção é parte da história

Mata Hari foi executada no pátio do Castelo de Vincennes. O fuzil do jovem oficial que executou a sentença fez correr o seu sangue antes que ela concluísse suas últimas palavras: "Gosto que me matem." No cinema, Greta Garbo mordeu o charuto e a frase foi cortada. Na vida real, Mata Hari, ou Margarette Zelle, foi condenada à morte por se recusar a confessar sua participação no maior contrabando da história. A Basílica de São João de Latrão, a maior e mais antiga de Roma, um verdadeiro museu de relíquias cristãs, teve alguns dos principais itens de sua fabulosa coleção secreta roubados. A saber: todos os originais dos evangelhos gnósticos, as cabeças de São Pedro e São Paulo, a Arca da Aliança, uma urna de maná, a túnica da Virgem, a mesa de jantar da Última Ceia, os cinco pães e dois peixes com que Jesus matou a fome de cinco mil, e, o mais notável, o prepúcio e o cordão umbilical de Jesus. Interrogada pelo serviço secreto francês sobre o destino que dera às relíquias desaparecidas, Mata Hari limitou-se a repetir seus "nada a declarar". O crime só não teve repercussão porque a cúpula papista estalou o chicote para abafar o caso. A Scotland Yard lavou as mãos. O último desejo da suposta espiã antes de ser libertada da matéria foi que sua execução se desse no vigésimo oitavo degrau da Escada Santa. Recusado. A famosa escada que Cristo subira para se encontrar com Pôncio Pilatos também havia sido roubada. O mundo cristão ocidental só contaria com o Santo Sudário dali para a frente. O paninho sujo de Cristo foi o único item que os ladrões deixaram para trás.

Prosa Caotica

Drops Drops Drops

Depois de jurar para todos nós, de pés juntos, inclusive invocando o testemunho do Seu Alfredo, dono do bar, que nunca mais ia namorar uma moça com QI abaixo da temperatura ambiente, o Mário aparece com quem? Com a Leda, pô. Sei lá, tudo bem, mas, jurou em falso, vai pro inferno.
*
Ele foi o homem-mais-forte-do-mundo. Companheiro do Tarzã na selva implacável. Agora faz interurbanos para pedir que alguém o autorize a passar o fio da TV a cabo pela parede. Ah, sim, e vai até a padaria para fumar escondido.
Às vezes, crescer - e por que não envelhecer?- significa assistir à impotência de seus heróis.
E, então, você também se torna impotente.
*
Não são nem 10 horas da noite de uma honesta quarta-feira e eu já estou bêbada. Ou isso ou a moça da novela realmente disse: "Eu tenho se esforçado tanto!"
*
Eu não sou bióloga nem zoóloga e os seis meses que fiz, em priscas eras, de Veterinária, não me habilitam a dar opinião nenhuma, eu bem sei. E então eu acho que tudo bem ir lá no meio da natureza catucar os bichinhos em nome da ciência, do conhecimento, do futuro da humanidade e tal. Mas em nome do que, de que ciência, de que-o-que eles fazem esses documentários do Discovery Channel, com quatro, cinco marmanjos sentados no lombo dum pobre jacaré? Quer dizer, serve pra que aquele espetáculo deprimente? A ciência avança? Eu desejo ardentemente que o jacarezinho se desvencilhe e coma os sacos de todos eles.
*
Vez em quando só me resta sacudir a cabeça, sorrir e admitir: os imbecis do mundo têm um novo rei.
*
"Nem tão depressa que pareça fuga, nem tão devagar que pareça desaforo", ensinava meu pai, certamente plagiando alguém.
*
A primeira visita deles à zona foi ciceroneada pelo tio do Soneca, que dizia:
- Senhores! Vamos às putas!
*
Que Deus nos livre de peças publicitárias com depoimentos espontâneos de clientes.
*
Quando tudo, mas tudo mesmo, irrita, é você que tem problemas, não o mundo. E o que é pior: o mundo sabe disso.

¡Drops da Fal!

Vultos

Tenho visto vultos ultimamente. Estou sentado na sala, vendo TV, e vejo uma forma vagamente humana aproximar-se pelo corredor, logo na fronteira do meu campo de visão. Viro-me para ver quem é, e não há ninguém. Estou sentado aqui no meu quarto, escrevendo alguma bobagem para deliciar meus leitores (Puxa, alguém mais idiota do que eu!, eles pensam) e mais sinto do que vejo uma figura infantil esgueirar-se pela porta na direção da minha cama. Olho e não há criança nenhuma (sorte minha, a última coisa de que preciso agora é de um processo por pedofilia).
Fosse outra pessoa, daria uns trocados para uma benzedeira, ou um dinheirinho pro padre da vizinhança benzer a casa. Ou então depositaria o dízimo no gazofilácio de alguma igreja neopentecostal, esperando em troca que o culto de descarrego surta seu efeito. Ou ainda: poderia levar uma galinha preta, umas velas e outras coisas assim para um pai-de-santo arriar um ebó que pacificaria os exus e pombas-giras que ora me atormentam.
Sendo eu, porém, um cético de pedra, vou acabar gastando dinheiro com oftalmologista ou, em último caso, psiquiatra.
Esse negócio de ceticismo sai muito mais caro...

Jesus, me chicoteia!

Ó, democrata, vá longe de mim

Deflorei um labirinto de infinitas tralhas este domingo. A causa era justa, e nosso Senhor há de me perdoar. Fiquei perdido algumas horas, e como não tenho o plano de saúde do Fittipaldi, salvou-me um velho novelo de lã.

Eu já atravessava a porta de emergência quando um minotauro, por maldade e razões estéticas, surgiu das sombras para me entregar, silente, uma relíquia arqueológica de valor comparável somente à pedra do mar morto e aos manuscritos de rosetta: o contrato social.

Puído e rasurado, mas ainda assim o contrato original. Assinado por Noé, seus descendentes e a Serpente; registrado no cartório do Céu.

Apesar de meus vagos conhecimentos de bicho-europeu alto, consegui traduzir boa parte do documento no ônibus, e estou aterrorizado.

Toda a gente sabe, desde Matrix I, que o ser humano é repugnante como um chuchu, e não passa de um câncer da natureza. Mas pelo que li, se tigres ou tamanduás estivessem no poder, seria pouco diferente. Sério. Dá uma olhada:

O Contrato Social (made in Ararat, performed by MPB4)

A Regra de Ouro: "É errado ser francês".

I Mandamento: Homem nenhum será, contra a sua vontade, forçado a trocar lâmpadas, ou abrir garrafas e pequenos potes.

II Mand: A propriedade não é um roubo, salvo na orla marítima e durante a temporada.

III Mand: Vegetarianos são a ralé da cadeia alimentar, e portanto não gozam de direito algum. Os hemivegetarianos estão fora.

IV Mand: O despotismo convém aos países quentes, a barbárie aos frios, e a democracia aos Estados pequenos e pobres.

V Mand: Das garantias fundamentais:
- merenda;
- toda religião é verdadeira, exceto o vodu;
- réu nenhum será submetido a siglas ou fogos-de-artifício;
- a imprensada é da defesa;
- não existe guerra ruim;
- hollywood;
- buy viagra online;

E assim vai.

Ainda não sei se entrego o contrato à Viação Nações Unidas ou se escondo no meu necromanicon, e o atiro nas cataratas do Niágara dentro de um barril. E nada me é mais saudoso que as canções da dupla Kant e Hans Kelsen, cheias de princípios bonitos para nos guiar.

dies iræ

14.9.04

Doze Meses.

de felicidade absurda.

No primeiro mês de sua morte, secaram todas as minhas espinhas. No segundo mês não senti mais dores nos dentes e nas costas. No terceiro mês, eu disse adeus às cãimbras e meus cabelos ganharam o brilho só visto nos anúncios de shampo.
No quarto mês livrei-me para sempre das unhas encravadas e do mal hálito. O quinto e o sexto mês passaram e eu não tinha mais aquele aspecto amarelado, com olheiras negras cavocando a minha cara. Dormia assim que encostava a cabeça no travesseiro, e não tinha mais o sono perturbado, cheio de pesadelos.
No sétimo mês após a sua morte, eu fui à Nova Iorque. Gastei o dinheiro da herança em compras inúteis, conheci lugares que só visitava em panfletos distribuídos pelas esquinas. No oitavo mês arrumei um noivo, e passamos os próximos trinta dias trancados no quarto nos consumindo em paixão. No nono mês implantei silicone nos seios, comprei uma televisão de noventa e nove polegadas, arranjei um motorista, e joguei fora todos os teus pertences.
No décimo mês já era costume mijar de porta aberta, jantar em cima da cama e ouvir música alta em horários absurdos. Nunca atendia o telefone. E quando me perguntavam, eu dizia que sim, sentia muito a sua falta, e que estava muito infeliz. No décimo primeiro mês, resolvi que era hora de sair daquela casa horrorosa, que ainda insistia em ficar impregnada do seu cheiro. Larguei tudo e me mudei poara um apê incrementado no centro.
No décimo segundo mês de sua morte, na missa de um ano, agradeci à deus por ter te encaminhado. Aquele tinha sido o ano mais feliz da minha vida.

Dani Carneiro em Zine Vanilli

Sexo impessoal em locais públicos

Alguns minutos depois das cinco horas da tarde de um dia de semana, quatro homens entram em um banheiro público, no Parque da Cidade... O que levou esses homens a largar a companhia de tantos outros que a essa hora se dirigem para casa ao longo das estradas? Que interesse comum traz esses homens, com experiências de vida tão diferentes, a essa instalação pública?

Eles não vieram pelas razões óbvias, mas sim em busca de sexo imediato. Muitos homens - casados ou solteiros, que se identificam como heterossexuais ou que apresentam uma auto-imagem homossexual - procuram pelo sexo impessoal e sem envolvimento que proporciona excitação sem compromisso. (...) O fenômeno do sexo impessoal permanece como uma forma comum, mas raramente estudada de interação humana.


É claro que um sociólogo maluco não deixaria um assunto como esse de lado. E o maluco se chamava Laud Humphreys (1930 - 1988). Autor de "Tearoom Trade: Impersonal Sex in Public Places", publicado em 1970. De onde saiu o trecho transcrito acima.

Esse estudo, além do interesse natural por um assunto pouco conhecido, guarda um aspecto muito curioso. Como seria possível fazer uma pesquisa cujo campo é constituído por banheiros públicos onde vários homens têm encontros sexuais rápidos e anônimos? Se o pesquisador não pretende fazer parte das interações que se desenrolam nesses ambientes, a resposta é bastante difícil. E era exatamente esta a situação de Humphreys.

Uma das alternativas seria entrar no banheiro como se fosse fazer uso convencional das instalações. O problema, nesse caso, é que o tempo do uso normal seria muito curto para fazer as observações necessárias. Se as visitas se multiplicassem, acabariam provocando suspeitas sobre as intenções do pesquisador, que poderia ser confundido com um policial. Outra alternativa seria simular a espera por alguém que ainda não havia chegado ou pela oportunidade de participar da "ação". Mas, à medida que a espera se prolongasse, o pesquisador acabaria sendo convidado por alguém a interagir. A observação teria que ser interrompida. Uma terceira opção seria assumir o papel de masturbador, pois entre os freqüentadores havia aqueles que se satisfaziam dessa maneira enquanto observavam as atividades dos outros. Humphreys não se interessou.

Após algumas tentativas, o pesquisador encontrou a maneira ideal para passar mais tempo dentro dos banheiros sem ser incomodado. Descobriu que (...)

O resto em observador sociológico

13.9.04

Quadros de família

As quatro mãos na mesma toalha branca (duas dentro, duas fora) e o banheiro cor-de-rosa todo embaçado: mãe e filha dividindo asseio, afeto e algo como quinze minutos de uma manhã passada.

Órgão, acordeon e dois violões para o par de mãos enrugadas por experientes; uma doce flauta doce que parece grande para o par de mãozinhas leves por inexperientes: a raiz atávica da música apresentada à neta pelo rosto plácido do avô.

Estetoscópio, roupa branca, plantão interminável e a doída ilusão do ouvido: os sapatos pisando o assoalho em meio à madrugada e a filha que chama “pai!, pai!” (mas era a irmã em seu primeiro par de saltos altos).

Se eu soubesse, pintaria minhas lembranças em aquarela.

Da Estrangeiridade

da série: tem coisas que é melhor nem saber...

Minha avó era uma mulher enérgica e positiva, que sabia dizer as coisas com muita tranquilidade e, acima de tudo, tinha um bom humor invejável. Um dia, lhe perguntei:
-- Vó, você nunca teve TPM?
-- Não. Eu não sabia que podia ter...

A f r o d i t e

12.9.04

Hoje uma pomba de rua deu um lindo rasante sobre o capô do carro, ambos em velocidades diferentes. Separados por uns poucos centímetros. Físicos, ornitólogos e oftalmologistas à parte, gosto do acaso que aproxima até o limite e evita o choque.

***

Serjones, que porras são essas que você anda escrevendo?

***

Fica um tempão sem escrever depois vem com negócio de pomba.

¢AtaRrO vE®De

do outro lado

Do outro lado da rua tem um garoto de patinete, tem uma mãe de cinco filhos, tem uns guris no video game. Do outro lado da rua, tem uns velhotes que jogam truco, tem uma mulher que costura, tem um casal que é moderno. Do outro lado da rua, também tem, às vezes, uns alemães que tomam vento na bunda branca. Tem homens em cadeiras de roda, gente que passeia cachorro. Tem crianças no parquinho, menino de rua e jogo. Tem táxi a dar com pau, tem velho tomando sol, tem luz que fica acesa a noite toda e silêncio nos apartamentos escuros. Do outro lado da rua tem outras vidas que não são a minha, tem tristeza, tem alegria, tem baseado e sacanagem. Tem também gente normal, que come, anda, faz exercício, lê um livro, limpa a janela e vai embora do serviço. E quando bate o cansaço e surge a fuga para outro lugar, a verdade é que sinto falta, sinto falta do lado de lá.

as partes do corpo

ERAM DUAS PÁGINAS QUE SE AMAVAM

Então um dia a página de um blog (o www.capuleto.blogspot.com) apaixonou-se pela página de um livro ( Montecchio, Uma Biografia). Em tempo: sem sapatices – uma página aí é macho e a outra fêmea; fica a seu critério, leitor. O que eu quero dizer é só isso: um dia a página de um blog apaixonou-se pela página de um livro. Ponto.

Ponto uma vírgula. As reações foram as mais acaloradas. Capuleto, o dono do blog, foi taxativo com sua página:

– Tire isso de sua tag head. Vocês são de origens diferentes, a união é incompatível.

Na outra frente as coisas não eram diferentes. O autor de Montecchio interpelou sua página:

– Como é que, por exemplo, vocês vão sobreviver?
– Eu me viro – gracejou a jovem página, que adorava essa piada pronta. Vendo que o autor não achou lá muita graça, explicou, séria: – Ela se muda para cá. Vem morar comigo. Pronto.
– Mudar-se para cá? A transição de blogs para livros é um mito. Isso não existe!

Amigos tentaram enfiar bom senso na cabeça do casal. "Não se misture com esse tipo: byte e tinta são como água e óleo. Ou o contrário", advertiu o confuso Mercuccio, amigo da página do livro. "Isso é fogo de palha: quando a necessidade bate na porta USB o amor sai pela janela de comentários", advertiu Tebaldo, primo da página do blog. Mas nada demovia as duas jovens páginas de seu inédito e febril intento. Então, ciente de que só em outro plano da existência a união se consumaria, a página do blog procurou Lourenço, um rato de biblioteca que ainda por cima era hacker. Este, cofiando os finos bigodes, alisando o longo rabo e mascando um naco de camembert, teve a inspiração: desconfiguraria provisoriamente a página do blog para simular um pow. Quando Capuleto achasse que ela estava definitivamente offline e desistisse do blog, ela seria secretamente reconectada e fugiria com a página do livro. Perfeito.

Só que Montechhio, Uma Biografia ganhou o troféu Jabuti, virou best seller, sua página ficou besta, enquadrou-se no establishment e esqueceu a página do blog – que nunca mais voltou ao ar porque Lourenço foi esmagado na estante pelo pesado volume do The Complete Works of William Shakespeare. Especula-se até hoje se terá sido acidente.

Ao Mirante, Nelson!

8.9.04

Hipótese 1

Este mundo é um esboço. Somos experimentos de alguma força metafísica que pretende, num futuro imponderável, construir um universo bem joinha e exato. Esta força, tipo um deus ou sei lá o quê, decidiu fazer um universo experimental. Quer cometer todos os erros que um Demiurgo pode cometer em sua obra para, nos universos a serem montados depois, não errar tanto. E por isso que somos tão imperfeitos e tudo é uma porcaria. Por isso que existem papagaios e fofoqueiras. Padres e testemunhas de jeová no Domingo de manhã. Jornais melodramáticos e telefones impertinentes. Tudo faz parte de um croqui inacabado, um universo café com leite.

Hipótese 2

Este mundo é o inferno. Pecamos antes. Bem antes de aqui chegar. E pecamos muito mesmo, o suficiente pra alguma força metafísica, tipo um deus ou sei lá o quê, criar este universo como forma de punição. E aqui estamos, pagando pelas cagadas em vida pregressa, feitas num outro mundo imponderável. Por isso que atendemos ligações de telemarketing (forças infernais encarregadas de tornar a vida telefônica realmente um inferno), pensamos que seremos felizes, cortando as unhas que não param de crescer e varrendo a calçada. Por isso que existem papagaios e fofoqueiras. Padres e testemunhas de jeová no domingo de manhã. Jornais melodramáticos e telefones impertinentes. O inferno, enfim.

Hipótese 3

Estamos aqui, e não poderíamos estar em outro lugar. Não pecamos, nem somos esboços, senão esboços de nós mesmos. Não há força metafísica ou outro mundo imponderável. Perdemos nosso tempo pensando em bobeiras e falamos demais. Muito mesmo. Transformamos nossas vidas em amontoados de conceitos registrados no Moderno Dicionário da Língua Portuguesa (apenas os lusófonos; os outros muito falantes falam muitas palavras de outro idioma muito cheio de palavras). Por isso que existem papagaios e fofoqueiras. Padres e testemunhas de jeová no domingo de manhã. Jornais melodramáticos e telefones impertinentes E assim perdemos nossas vidas pensando no que elas poderiam ter sido e jamais conseguimos achar as palavras que definam o que realmente somos.

Outras hipóteses podem ser aventadas. São infinitas. Mas uma força metafísica, tipo uma Brevidade ou sei lá o quê, impede-me de continuar.

Textículo Grátis. Leia antes que vá pro saco.

MEU PRIMEIRO DIA SEM O LEANDRO

"Porto Alegre - Um Uno saiu da pista e invadiu o canteiro central da freeway (BR-290), no km 87, próximo à Avenida Assis Brasil, por volta das 22h30min. O motorista Leandro Mohr, 32 anos, morreu na madrugada de ontem no Hospital de Pronto Socorro. Ele teria tido um mal súbito e perdido o controle do automóvel."
Jornal Zero Hora

"A Dor não tem nada a ver com tuas características individuais. A Dor é uma pessoa que te confronta."
"A Dor contemporiza, ilumina e aquece, gira igual sobre bons e maus. Põe frutos e os madura. Mas não os colhe."

Maria Carpi, Nos Gerais da Dor


Se eu tenho uma dor, eu não a abandono, não fujo dela. Eu quero alfabetizá-la, senão ela corrói as outras lembranças, se adona do que não é dela, se apossa das alegrias que a antecederam e das alegrias que estavam por chegar. Mas há dores analfabetas, arrivistas, que nos mostram o quanto a própria palavra pode ser fútil e desnecessária, o quanto que os planos podem nos contrariar, o quanto somos inexplicavelmente insignificantes. São poucas as vezes em minha vida em que renunciei a fala. Talvez em um aniversário em que ninguém se lembrou de mim. Talvez quando perdi minha avó e tive um sonho anterior em que ela me entregava uma carta. Mas eu ainda optava por não dizer nada. Tinha condições de terminar o jejum a qualquer momento. O pior é quando não se consegue falar mesmo tentando, não se fala por necessidade, ouso abrir a boca e não sai a corda da cisterna, o balde da chuva, o rumor da porta. Todo o corpo congestionado, trancado em tremores e estalos. Nada. Leandro morreu. Um amigo que cursava o mestrado em Letras Inglesas na Universidade Federal de Santa Catarina. Sua mulher é uma de minhas grandes amigas, Adriana, que trabalhou comigo na Unisinos. Ele teve uma parada cardíaca enquanto dirigia. 32 anos, a minha idade. Escrevo por extenso para a idade parecer mais longa: trinta e dois anos. Adri largou tudo para acompanhá-lo no último mês em Florianópolis, arrumou emprego por lá, se transferiu para ficar perto dele. Não sei se acredito em profecia, porém ela teve. Acompanhava Leandro na hora do acidente. Não sei quais foram suas últimas palavras, as últimas palavras não importam, eu pensava que importavam até hoje, porém não importam, sinceramente o que vale é o que não foi dito e que a Adriana compreendeu. Adriana, no meio da loucura do luto, chegou a dizer com uma serenidade que só o amor prepara: "ele morreu feliz, o mês que passamos juntos foi um dos mais felizes, não morreu sozinho". Ela me abraçou com tanta dor, que volto a chorar ao afrouxar o abraço. Não havia osso em meu rosto. Não havia algo que possa depois suavizar na forma de cipreste ou figueira. Havia um fogo rude, querendo apenas deixar sua cinza, carvão, pedra de vento, asa calada de pedra. O pássaro não é somente sua asa. Uma comoção sem fôlego para responder, sem parentes nas árvores. Corpos prensados, bem antes do nascimento da água. Casulo trincado em brasas. O que ela me abraçou ficou ali. Ela abraçou sua dor, eu não existia. Ela atravessou sua dor, eu não a percorri. Ela deve ter recolhido os sapatos dele na estrada, reunido as roupas, para não deixar nada fora de sua morte. O pulmão dela deve ter trocado de turno com o coração. Quando entrou na sala do velório, com aquelas lâmpadas e coroa de flores, aquele lustre que não correspondia ao despojamento do resto, ela gritou sem adjetivos. Um grito agudo, intransponível. Fiquei de fora naquele momento. Entrei no grito dela. E comecei a pensar sem querer pensar o que eu faria em seu lugar. E não consegui. Não interrompi as calhas, não espremi as frutas. Fracassei em chegar onde o homem não há. Eu não consegui te acompanhar, Adriana, desculpa, eu não consegui chegar em tua dor ao menos para alfabetizá-la. É como se a poesia fosse lenta demais. E não entendi Deus ou o seu sentido de dar o que nem queremos, de tirar o que nem sabíamos que tínhamos. O grito dela virou um ouvido. Um ouvido. E o pai do Leandro e a mãe do Leandro, à beira do leito, não reconheceram o filho, que sempre andava de bonés, de bermudas folgadas, com um figurino praiano, solto, jovem. E velaram o corpo do seu filho, os lábios secos e pálidos, a falta maior do que a falta, como se fosse o corpo do melhor amigo do filho. O Leandro no caixão não era o Leandro, tão pequeno, encolhido, sem o peso de suas braçadas pelo ar, sem a arrogância do sopro, sem a generosidade do sopro. A morte nos devolve a estranheza. Eu desejei embalá-lo no colo para acordá-lo do medo. Vou coletando suas frases, com receio de alterá-las, marisco guardando o mar com os cuidados de quem segura as antenas de um inseto. Deixo uma cama desocupada em mim, um armário desocupado em mim, um riso que não vai conseguir ultrapassar a outra metade que a dor ocupou. É meu primeiro dia sem o Leandro. O primeiro dia do mundo sem o Leandro.

Fabricio Carpinejar

LAR DOCE LAR

São seis gatos. Cada um com um nome, uma personalidade, uma biografia. Um cachorro vira-lata e neurastênico, que pensa que é gato. Uma Fal gorda e amalucada se arrastando de mudinha pelo apartamento e falando, com os bichos ou sozinha. Um Alexandre que chega no comecinho da noite, carregando pãezinhos recheados e paciência, muita paciência. Já num tava bão? Não, tinha que vir minha mãe também, que fez uma cirurgia séria, faz quimio e radioterapia, cria os maiores pastores alemães do mundo (não sei se são os maiores, mas são os mais maleducados) e fica indo e vindo, daqui pra casa dela, da casa dela pra cá, falando pelos cotovelos, desfiando as mais loucas teorias conspiratórias, fazendo pudins e nos enlouquecendo.

Agora, esses dias, ela leu nalgum oráculo semanal que o casal Collor tá virando evangélico.
- Tá vendo? - ela vira pra mim, berrando - Viu??? E é POR ISSO que você não arruma editora!
- O quê? você tá dizendo que eu devia me converter, Mã?
- Mas é lógico, menina! A Regininha Poltergeist, o filho da Rita Cadilac, a Mara Maravilha, o Wanderlei Cardoso? você não viu o âpigreide na carreira deles, após a conversão?
- Mas, mã, e esse tanto de palavrão que eu falo?
- Fabia, a Rita Cadilac fez filme pornô!! A Monique até outro dia tinha um programa que era um negócio. Até a filha do Gil, é evangélica e posou pelada!! E você nem vai tão longe, são só uns palavrõezinhos, que é que tem? E você bem que podia maneirar.
- Mas mãe, isso não é garantia de ...
- Como não? Como não? O Wanderlei, quantos anos você não ouvia falar dele? Tá em tudo quanto é canal! E a filha do Gil que ganhou até programa? Tá todo mundo se convertendo e se dando bem!
- Pera Mã, todo mundo não, o Ronaldinho e a Cicarelli...
- É porque ali tá tudo bem, minha filha. Espera ele começar a errar gol e os peitos dela caírem, que você vai ver os dois dando testemunho.
- Mas...
- Não tem mais. Converta-se. Imagina quanto testemunho você vai poder dar? São praticamente 34 anos de arrependimento e pecados, Fabia! Você vai ser um sucesso.
E nem adianta falar mais. Ela não ouve. Os olhinhos são dois cifrõezinhos brilhantes.

¡Drops da Fal!

Não te cantarei uma canção de ninar, não te desejarei boa noite entre lençóis brancos sem máculas do dia. Não te prometerei tirar pra dançar antes que anoiteçam nossas monotonias. Não tomarei tua mão de assalto num trem de hipocrisia, não te darei um bote entremeios de alegrias. Não te farei promessas, compressas, não me esvairei depressa fugindo da letargia. De mim, pra ti, há pouco que te daria. Te daria as felicidades guardadas para aqueles que desafiam a rotina com espadas de-lírios, meu sorriso mais doce temperado de lágrimas de menina, todos os meus suspiros pousados na cortina, uma caixa de mágoas (cada vez mais raras e cada dia mais vazia), meu ventre para gerar teu filho. Te prometo só meu dote pouco, meu desejo grande, meu amor leve num sopro.

Não Discuto

4.9.04

Cansei do mocó. Vou-me embora pra puta que pariu criar galinhas. Eu sei fazer isso. Sei até interromper o choco de uma galinha, mergulhando-a num balde de água fria. E retirando-a, naturalmente. A intenção não é afogá-la. Tão logo é retirada da água, a galinha passa a comportar-se como antes do choco, inclusive cumprindo sua obrigação de botar ovos. Aí decido. Ou vou comendo todos os ovos e me entupo de colesterol, ou vou juntando alguns para virar pintinhos. Posso também colocar os ovos numa cesta e sair distribuindo pela vizinhança: "olá, dona Luciana, como está essa bucetinha hoje?" ou "bom dia, dona Angela, sabia que gemadas firmam a bunda?" Pequenas gentilezas, enfim. Coisas que se praticam no interior, ou seja, lá na puta que pariu. Talvez até me candidate a vereador da cidade: "pooooovo da puuuta que pariiiu! Homens e mulheres desta pujante e majestosa terra! Putaquepariuenses de nascimento e de coração!" Posso até dispensar o Duda Mendonça e o Nizan Guanaes. Deste último Deus me livre, não elegeu o Serra presidente, não elege mais ninguém nem na puta que pariu. Tá certo que ele veio de lá, aliás os dois vieram, mas dispenso. Da minha eleição cuido eu. E eleito, meu primeiro projeto será levar a internet de banda larga para a cidade. Só assim, só na puta que pariu eu me vejo livre desta maldita conexão discada!

¢AtaRrO vE®De

EU MALTRATEI CRIANCINHAS E VELHINHOS EM OUTRA ENCARNAÇÃO!

Você trabalhou até mais tarde para otimizar o tempo. No horário de ir embora, despenca um toró do tipo ninguém-merece. Você não tem guarda-chuva e acaba de se dar conta que o controle da garagem do Fórum está dentro do carro que, por sua vez, está dentro da garagem que, por sua vez, está com o portão fechado. Você imediatamente pensa em chamar o guarda. Surpresa: não tem guarda! Você então pensa em dar uma volta em torno do prédio do Fórum para ver se algum servidor ficou trabalhando até mais tarde, embora o único carro que esteja na garagem seja o seu. Continua chovendo. Depois de percorrer toda à frente do prédio, você verifica que existem duas possibilidades: ir a pé até o metrô e pegar o trem de volta a Gay Harbor ou pular o muro do Fórum. Você está de saia e sem guarda-chuva, não esqueça se pesar estes detalhes para decidir! Pronto, seus problemas acabaram, a chuva aumentou. Prenda a saia na calcinha e ponha-se a escalar o muro, cuidando para não quebrar o salto ou torcer o tornozelo. Palmas, amiga, você conseguiu! Entre no carro pingando, pegue o controle remoto dos infernos e abra a maldita garagem para finalmente ir pra casa tirar as meias que ficaram imprestáveis.

Vocês pensaram que acabou? Pensaram?

Pois enganaram-se, seu dia não acabou!

Você chega em casa depois de ter dirigido com chuva na estrada, abre a porta com a bolsa num braço, processos no outro, casaco por cima e a chave do carro na boca. Eis que, tiam tiam tiam tiam: parado, bem no meio da sua sala está.... O FINADO.

Não se apavore, amiga! É só miragem. Seu inconsciente lhe pregando uma peça. Um pesadelo. O alucinógeno do seu chá que está fazendo efeito. Pisque. Pisque de novo. Seu inconsciente resolve se mexer e falar Oi. Pisque mais uma vez que você perceberá tratar-se de um fantasma, afinal, para 02 de novembro ainda falta muito...

”- Oi, Roberta.
- Hã?
- Tudo bem?”

Sua irmã querida-fofa-mimosa-você-vai-me-pagar-sua-vaca vem da cozinha:

”- O Finado veio me trazer o quimono.
- Quimono!?
- Pra minha aula de judô?
- Judô!?
- Roberta, eu te falei que ele ia me emprestar...
- Tá, eu vou tomar banho. Tudo bem contigo?”

Idiota, como que não vai estar tudo beeeem? Ele acaba de retornar da Europa!!!! Inclusive, fez o roteiro que vocês tinham planejado fazer juntos! Se Deus existisse, tinha voltado com o intestino desviado para uma bolsa, e não estaria mais lindo do que nunca, ostentando um bronzeado que lhe ressalta os dentes branquíssimos, parado no meio da SUA sala, quando você chega em casa toda escabelada e molhada da chuva!!!!!!!!!!! Finalmente você se convence que Deus não existe.

Megeras Magérrimas

Seu Lindauro e o capoeirista

Monte Santo é uma cidadezinha perdida lá no sertão da Bahia. Foi célebre em duas ocasiões: quando Gláuber Rocha filmou lá Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964, e quando Tizuka Yamazaki fez a versão televisiva de O Pagador de Promessas, em 1988. E daí? Daí que lá nasceu meu pai, e foi lá que se passou a história que vou contar.
As origens da família se perdem numa curva lá atrás, no século XIX. Sei que meus avós nasceram em Monte Santo, assim como meus bisavós e, desconfio, os tataravós. Daí para trás nada mais se sabe. Eu arriscaria dizer que a família está na cidade desde os Neanderthais, não fossem estes, como sabemos, uns narizes empinados que não saíam da Europa por nada. Azar o deles: acabaram extintos. O Homo sapiens, por outro lado, arriscou migrar para Monte Santo e por lá prosperou: teve filhos, os filhos tiveram filhos, e assim sucessivamente até aparecer Mané, que gerou Júlio, que gerou Lindauro, que gerou o estrupício que vos fala, incapaz de manter uma linha narrativa. Mas retomo.
O negócio é que desde criança ouço histórias sobre a juventude de meu pai em Monte Santo. Quando menino, elas me encantavam. Tinha uma favorita: meu pai dizia que certa vez apareceu na cidade um capoeirista vindo de Salvador. Tocou o terror na cidade, comprou briga com todo mundo, um inferno. Até o dia em que bateu nos meus tios. Meu pai, emputecido, foi e deu uma surra no tal capoeirista, que sumiu da cidade de madrugada para nunca mais voltar.
Ah, a infância! Seu Lindauro me contava essa história e eu me empolgava, acreditando em cada detalhe vívido narrado por ele. Mas aí veio a puberdade e com ela a desgraça do ceticismo. Pronto: era meu pai começar com a história do capoeirista para eu revirar os olhos. Percebendo que eu o tomava por mentiroso, desistiu de contar a história.
E eis que em outubro de 1998 fui trabalhar numa empresa no Largo do Arouche. No mês seguinte, enquanto nos dirigíamos para o restaurante em que se daria a festa de fim de ano da empresa, o Márcio, que trabalhava na mesa ao lado da minha, comentou sobre seus planos para as Festas:
— Estou pensando em ir visitar a família em Monte Santo.
— Onde?
— Monte Santo, cê não conhece.
— Pior que conheço...
— Já sei, vai falar daquela Monte Santo de Minas...
— O cacete, com essa sua cara de baiano? Tô falando de Monte Santo mesmo, perto de Euclides da Cunha, sertãozão da Bahia.
— Eita! Como é que você conhece aquele fim de mundo?
— Pois meu pai é de lá, rapaz!
— Como é o nome do teu pai?
— Lindauro.
— Hum... Esse nome não me é estranho...
— Vixe. Ei, já pensou se formos parentes?
— Deus me livre!
— Não é difícil, não é difícil... Ali nego casa com a prima, acaba todo mundo sendo aparentado.
— Isso é. Vou ver com minha mãe se ela conhece sua família.
— Vou fazer o mesmo com meu pai.
Passou a festa, passou o Natal, o Ano Novo. Começo de ano, lembrei de perguntar ao Márcio:
— E aí, descobriu alguma coisa?
— Rapaz, o pior é que somos parentes mesmo.
— Pára com isso!
— É sério. Meu avô era primo do seu avô.
— Então nós somos...
— Primos em terceiro grau.
— Eita. Bom, nem é parentesco de verdade.
— Nem é. Mas o mais legal foi quando falei pro meu primo. — Acho que era primo, não me lembro.
— Por quê?
— Disse a ele, "Tô trabalhando com o filho do Lindauro, conhece?".
— E ele?
— Arregalou os olhos. "Lindauro, aquele doido???".
— Peraí. Doido? Meu pai? Meu pai é crente, Márcio.
— Ah, mas a fama dele é de doido. Esse meu primo viu seu pai dando um couro num capoeirista que andava infernizando o povo lá em Monte Santo. O tal valentão sumiu sem deixar rastro.
À noite, cheguei em casa já me preparando para a vergonha que seria dar a mão à palmatória do velho.
— Ô pai. Tô trabalhando com um sujeito que tem família lá em Monte Santo.
— Ah, é? Que beleza!
— Pois é, pois é... E ele tem um primo lá que disse que você é doido.
Rê-rêêê! Doido por quê?
— Porque você botou um cara lá pra correr...
— Ah, o capoeirista? — o velho mal conseguia disfarçar o sorriso de vitória — Aquilo não foi nada não. Mexeu com meus irmãos, queria o quê? Bati mesmo. Lógico!

Jesus, me chicoteia!


I'm too sexy for my country

A única coisa que tenho contra os americanos é meu AK-47. Isso e o tal do football aquilino. Puxa vida, quase não se usa o pé, e a bola nem é uma bola; se chamam nosso futebol de soccer é por puro despeito e maldade.

O futebol é o maior esporte do mundo, e qualquer leitor de Nelson Rodrigues sabe que sobre isso contestação possível não há -- não sem pancadaria da grossa pelo menos.

Trata-se de um esporte não apenas plástico e biodegradável, mas o desporto da verdadeira democracia social-cristã. Sim, democratíssimo, ouvi na tevê que qualquer um pode praticá-lo.

Qualquer um? Qualquer um menos eu, que sou jogador totalmente clássico, até no condicionamento físico, e por isso me recusarei eternamente a usar chuteira.

"Chuteira", sinceramente, que étimo cru, bruto e nivelador por baixo. Recuso-me a comprar chuteiras, e ainda que me dessem duas caixas, em todas as cores e formatos, preferiria distribuí-las às pessoas pobres do morro, de quatro e sem ter o que vestirem, a macular meus pés clarividentes.

Chuteira... ora, eu não chuto a pelota, como um mozart trombadão qualquer, eu a lanço, como que antevendo a cena. Comigo não tem passe pro lado, enrolação, desfilo somente lançamentos de quarenta, sessenta metros. Minha elegância no relvado é cousa raramente vista, até porque jogo onde a grama não cresce.

"Mas se você é um perna-de-pau, por que então não usa chuteira?"

A Pátria de Chuteiras. Não dá pra escutar isso uma vez por semana, durante trinta anos, e continuar calçando a desclssificada. Não, não; não eu. Já dou bom-dia aos feirantes, acordo com meu coração pegando fogo e pago todos os meus impostos em dia. Chuteira vocês não me farão usar. E luvas, agora, só da esgrima e da nobre arte.

dies iræ

3.9.04

BALADA DOS VINTE ANOS

Fui preso aos vinte anos. E para escapar de uma sindicância que resultaria em condenação por tráfico, me envolvi com o tal advogado porta-de-cadeia. Em seis meses, consegui pagar duas dívidas: com a Justa e o Justo.
Doutor Justo, melhor dizendo.

Consegui fazer tudo sem interromper as aulas na faculdade. E muito menos deixei que o pai e meus seis irmãos peludos soubessem da história. Fiquei quieto. Tudo ia bem, até um dos canas que me prenderam, o Jim das Selvas, ficar no meu pé.
Ele aparecia na porta da pensão do Méier onde eu morava e dava três pancadas na janela. Depois me pedia o que tivesse no bolso. Em geral não era muita coisa, apenas o que sobrava para comer, pagar as contas, comprar uns livros.
Quatro meses nessa merda e caí fora. A maneira que arranjei para fugir foi prestando vestibular. Outro endereço, outra vida.
Era a solução, àquela altura.
Quanta besteira.

Minha família não gostou nadinha, afinal faltavam dois anos para a formatura. Fiz as provas assim mesmo. Passei em sétimo, saí do Rio e fui morar no interior de São Paulo.
Eu era viciado em cocaína, então. Foi difícil, sozinho numa nova cidade. Sobretudo sem conhecer ninguém.
Também não atravessava o auge de minha carreira cômica. E -- sem piada --, aproveitei para tratar do vício, inventando um método baseado em cerveja, quietude, silêncio.
Eu prescindia de platéia, naquele tempo.

E o tempo passou. Por um ano todo consegui não fazer amigos. Às vezes meu único papo semanal era com o garçom de um boteco que freqüentava. Em geral eu ficava lá, sentadão, vigiando as tartarugas da avenida para que não fugissem.
Daí me recuperei e comecei a ir às aulas.

Foi no primeiro dia, quando desci do ônibus. O sol detonava qualquer chance de contorno nítido nas coisas daquela tarde -- e eu a vi -- uma sombra fina, insinuante, sobrevivendo ao dia, cabelos e as mãos no rosto, tentando tapar a luz que entrecortava os dedos finos e refletia na sua pele, até os olhos enormes de heroína de mangá.
Eu me apaixonei, claro.

No ano em que me submeti a esse sistema maluco de recuperação (que consistia num engradado de cerveja a cada seis horas) perdi totalmente meu desejo sexual.
E ele voltou. O desejo voltou novamente.

Parti pra cima dela, armado de sorrisos e olhares, um arsenal de conquista impensável a um travado como eu. Mas a duras penas de avestruz no cio eu a conquistei.
Diana Palmer... Quando prendia os dedos nos fios de suas tranças negras, conseguia ver a lua em suas pupilas e ouvia o batuque de tambores de pigmeus africanos cada vez mais alto, alto e alto, até descobrir apenas ecos de meu coração na noite e um cheiro de queimado.
Então, depois de meses dentro dessa fotonovela romântica tipo Sétimo Céu, tudo começou a dar pra trás.

Certo dia na faculdade vi Jim das Selvas ao lado do ônibus, sorrindo para mim. "Onde pensou que ia?", ele falou, fingindo arrumar a gola de minha camisa. E também "Preciso de grana", seguido de "Já sei onde cê mora" e "De noite passo lá".
Apenas engoli saliva, sem responder.
Aquele era o dia do meu aniversário. Não dava pra acreditar.

Ao chegar em casa vi a silhueta de Jim das Selvas no fim do corredor, ameaçando Diana Palmer contra o muro úmido.
A raiva tomou conta de mim. Algo estranho aconteceu.
Enquanto nos braços pêlos cresciam e uma dor intensa tomava meu corpo, vi a picape estacionar e dela descerem o pai e meus seis irmãos peludos. "Chegamos tarde, chegamos tarde", latiam, em uníssono.
Nesse momento a lua enorme estourou no céu e farejei o cheiro de dama-da-noite e o ganido de todos os cachorros do mundo pareceu subir no quarteirão de cima.
Então enveredei corredor adentro no encalço do Jim das Selvas com as garras em riste e os caninos arreganhados, feliz por ser o sétimo filho homem de minha família, feliz por completar vinte e um anos naquele plenilúnio.

A volta de JRT no HOTEL HELL

A biblioteca de Bebel

a Jorge Luis Borges

Se eu digo que nos galhos de um cedro do Líbano costumavam se aninhar todas as aves dos céus. Que à sua sombra se acolhiam todos os animais dos campos e descansava toda a espécie de gente. Se eu digo que meus ouvidos mortais não foram preparados para o som de cânticos, das harpas, das liras e dos címbalos. Que, antes disso, as ruas abertas de minha infância transformaram em mármore as tardes que hoje busco na memória. Se eu digo que minha raça, classe e sexo são definitivamente a garatuja de tudo aquilo que sou. Que tudo aquilo que sou poderia muito bem acomodar-se no espaço entre uma vírgula e um ponto num rodapé desnecessário. Que não tenho a pretensão das páginas elegantes para pendurar minhas reflexões rudimentares de minha vidinha rudimentar, muito menos quinhentos séculos de dúvidas. Se eu ainda assim digo que não acredito num livro total porque sempre desconfiei dos místicos e do seu Deus circular de lombada contínua, é porque, depois de tudo o que acabei de dizer ou que me disseram, o meu universo não é uma biblioteca, ou porque qualquer coisa que eu venha a dizer ou escrever não passam de letras soltas de uma história inteira de que quase nem lembro.

Prosa Caotica

mundo
JANS BLEEGA, LUMINAR DO PENSAMENTO DE ESQUERDA, MORRE EM ACIDENTE NAS CANÁRIAS

O filósofo dinamarquês Jans Bleega, autor de inúmeras obras sobre a sociedade européia e chamado por Jurgen Habermas de “maior expoente vivo do pensamento de esquerda”, morreu hoje nas Ilhas Canárias depois de pular sem pára-quedas do alto do Pico de Teide, lugar famoso como plataforma para base jumping. De acordo com agências de notícias internacionais, o filósofo teria pulado numa tentativa de provar uma tese desenvolvida no seu livro “Mais c’est belle la Revolution!...”, segundo a qual a gravidade não passaria de uma "impostura burguesa".

“Bleega acreditava que a gravidade era um construto social como qualquer outro, propositalmente imposto pela burguesia como instrumento na guerra de classes”, disse Habermas para a redação do ASS Ilustrado. “Ele foi um dos primeiros a apontar que a lei da gravidade foi desenvolvida por Newton mais ou menos na época em que a Revolução Industrial começava a tomar forma em algumas partes da Inglaterra. Ele achava muita ingenuidade acreditar que isso se tratava de uma coincidência, e todos os seus alunos lembram com carinho de como ele costumava rir e fazer aspas com os dedos ao falar dessa “coincidência”. Para Bleega, não haveria indícios de que a gravidade existia na Grécia Antiga, por exemplo; e ele ficou famoso por afirmar que Sócrates teria feito a sua defesa perante o Tribunal dos Quinhentos enquanto voava nos céus de Atenas, fazendo loopings em colunas dóricas e rasantes sobre as cabeças de seus juizes."

A filósofa brasileira Marilena Chauí, ex-aluna de Bleega na Universidade de Estocolmo, se disse "profundamente abalada" com a notícia. "O pensamento de Bleega dificilmente será superado. Para Bleega o proletariado desde o início dos tempos sempre voou livre e satisfeito; a gravidade teria sido acima de tudo uma criação de historiadores burgueses do vale do Rhur, preocupados com a possibilidade de que os trabalhadores das minas de carvão saíssem voando ao invés de trabalharem. Seu ato triste desta manhã foi uma tentativa de provar o que acontece quando um espírito livre desafia as amarras conceituais da sociedade burguesa”. Os restos do filósofo dinamarquês foram reunidos em cinco caixotes de banana nanica, e sua chegada em Copenhagen estava prevista para o início da noite de hoje.

Alexandre Soares Silva

1.9.04

Diálogos paulistanos (sempre baseados em fatos reais)

– Como é o nome daquela substância que o corpo produz quando a gente toma sol, hein?
– Suor!
Amo esta cidade com todo o meu ódio, como dizia o finado Carlito Maia.

ócio & ofício para espairecer durante o estresse + ocupar a mente nas horas de folga