30.10.04

COMO AS MULHERES REAGEM QUANDO VOCÊ AS ENCARA NA RUA: PEQUENO CATÁLOGO DESORGANIZADO (REPOST)

As que ajeitam os cabelos sao as piores.

Há as que olham para o chão.

Aquelas de peitões sob camisetas translúcidas olham para eles. Talvez para fazer uma rápida checagem ou entao como se dissessem: sao meus e você os quer, né?

As de óculos escuros: há aquelas que olham por cima deles para você, e outras cujo olhar a gente perde completamente e fica apaixonado por elas. A não ser que ajeitem o cabelo.

As de óculos de grau geralmente são as que olham para o chão.

As mais raras são as que enfrentam o seu olhar, seguram-no, desaceleram o passo e aceleram o meu próprio passo e o meu coração. Destas você, o tímido, tem medo, mas também se apaixona por elas, a não ser que ajeitem os cabelos, claro. Apaixonar-se quer dizer levar o impacto da sua imagem gravado na retina durante um certo tempo.

As que olham com raiva.

Outras ajeitam a roupa. Por exemplo, esticam a blusa quando focamos a barriga e o umbigo. Não gosto dessas.

Acompanhadas por outro homem, retribuem o olhar. Dá vontade de agradecer-lhes pela distinção.

Olham para cima como se dissessem: céus, mais um que me olha, não aguento mais.

As que não existem: olham para trás quando você passa por elas em sentido contrário, como se fossem homens. Estas realmente não existem.

Que usam aliança: um capítulo inteiro para elas, livros. Kareninas, bovarys, luísas que passam por você como grandes desastres naturais, mas dos quais sai vivo por muito pouco. E depois se arrepende. Mas dá graças aos céus por ter se arrependido. Sabe que é melhor arrepender-se da omissão do que da ação.

As grávidas: olham para você olhando para a barriga delas. E fazem com que você deseje ser uma pessoa melhor.

etc.

terceiro BLOGAUTI

29.10.04

punção da pulsão

Deitada no colo do médico, como se fosse uma boneca de pano de tamanho natural, daquelas com as quais se dança caipirescamente, pés enroscados nos sapatos, sofreria uma punção no pulmão. Mas a palavra que surgia era pulsão: uma pulsão no pulmão. Agulhas de vários tamanhos, com seringas e objetos de operações estranhas. Mistura de dois movimentos. A punção que punge, fura e retira o líquido, o pus, seja lá o que for, ajuda a diagnosticar, a curar. A pulsão que impele, pressiona, movimenta. Para onde me leva minha respiração?

as partes do corpo

Falsos profetas e promessas de uma terra que não existe - ou deixará de existir brevemente

Na porta da escola, uma criatura de boina me perguntou se eu gosto de poesia e ainda teve a bênção de receber o movimento da minha cabeça se movendo negativamente e não um grunhindo, uma careta, um tapa no cocoruto, derrubando a boina dele no tráfego, ou coisa que o valha. A criatura, vendo eu entrar na escola - que não ensina nada - e com a pasta de desenho em mãos - que só serve pra dificultar minha locomoção e esmurrar acidentalmente velhinhos e velhinhas nos ônibus e metrôs de São Paulo - riu pseudo-sarcasticamente, porque eu tenho uma religião, e nela se baseia que pessoas que usam boina, ou vendem poesia na rua, abordando pedestres atrasados, não tem capacidade intelectual para atingir o nível do sarcasmo bonito, o sarcasmo maroto e malandro dessa rapaziada traquina, e disse "Estuda arte e não gosta de poesia? Humpf", e eu gastaria toda minha saliva (estou resfriada, ainda por cima) cospindo nos seus livrinhos, picotando a boina em mil pedacinhos, torturando ele num quarto do Hotel Melancia do Ruy Othake, derrubando ele de alguma rampa do Oscar Niemeyer e gentilmente penetrando um quadro com círculos e quadrados e outras formas geométricas chamadas arte na cabeça dele, já desboinada e sangrenta, mas eu estava atrasada.

*

Nada bom pode vir com o Verão que não seja neve. Cansada, cansada.

Fabulosa e Inútil

Esquizofrenia

- Cê pega mulher pra caralho, né?
- Claro que não. Olha pra mim! Vê se eu sou o tipão que pega mulher aos borbotões?
- Ah, manda a real. Essa conversinha de "sua opinião que se foda", esse ar de "tô cagando pro que você pensa" e teus textos de "toma aqui a verdade na tua cara e vê se agüenta o tranco" são só pra deixar a mulherada atrás de você.
- Deixa eu ver se entendi: na sua cabeça, então, não há nada mais irresistível do que uma pessoa que não só discorda de tudo como faz questão de deixar isso bem claro? É isso? Ser chato é o tipo de coisa que atiça os seus hormônios?
- Mas você não é chato.
- A descrição que você fez soou bem chata, pra mim.
- Ah, cê entendeu. E não muda de assunto. O fato é que você é um pegador.
- É, eu sou um pegador, sim. Ô! É só eu adentrar um recinto e a mulherada de imediato entra em polvorosa. Os olhares percorrem meu corpo, ardendo com lascívia. As bocas sussurram meu nome, as faces enrubescem, as mentes ficam vazias, retornam para seu estado primitivo e tudo o que as fêmeas passam a desejar, a partir de então, é o contato carnal puro e simples com o macho alfa aqui. Algumas choram, outras, ignorando a presença de estranhos, não conseguem conter o desejo que escorre delas qual pororoca do amazonas e levam as mãos às suas fontes personalizadas de prazer. O objetivo de todo ser vivo com dois cromossomos X num raio de 20 metros é sentir dentro de si a presença inenarrável deste que vos fala. Pode crer.
- ...
- ...
- Além de tudo é um poeta, veja só.
- Você perdeu completamente o contato com a realidade, na boa.

Puro Pedro Nunes em ::Utopia Dilucular::

"Eu gosto de brigar mas tenho a mão fraca, doutor".

[Marcão, negão de 2 metros e meu considerado, ao pedir hoje que não lhe apertasse a mão com muita força. Destruiu alguém na madruga, de novo].

*

Coitadas das putas da Augusta. Ou mostram a mercadoria e congelam, ou seduzem na base do olhar. O que não é propriamente a vocação de todas, a começar das vesguetas. Sim, elas também faturam. Tu acha que o cara vai olhar nos olhos e dizer meu bem? Passar talquinho? Só não pode ser vesgo o olho do cu. Esse tem que olhar o freguês na cara, convidativo, e convencê-lo de que é pitéu. Vale piscar.

*

Não adianta, não consigo ler ogivas nucleares. Sempre leio vaginas nucleares.

*

Hoje tá bonita a manhã em São Paulo. Céu azul, friozinho, um lindo sol, uma luz leve. Uma bela manhã pra se comer um cu...

compilação da finesse do ¢AtaRrO vE®De

Gus Van Sant´s Superman (2004)

Muitos riram quando Gus Van Sant disse que ia dirigir sua própria versão de Superman, mas o diretor calou a boca de todos com a atuação que conseguiu arrancar de Philip Seymour Hoffman no papel principal. Poucos se esquecerão da cena em que Hoffman (Superhomem), num quarto de hotel vagabundo, telefona para Lois Lane (Jennifer Connely) e começa a chorar e se masturbar ao mesmo tempo.

Superman: Oh, God, Oh, God, Oh, God…
Lane: Who is this? Clark?
Superman: Uh, no… It´s Superman… I´m sorry…Oh, God. (desliga)

Ou da cena em que Lex Luthor (Dennis Farina) e seu capanga Otis (Steve Buscemi) abrem um armário de vassouras em seu esconderijo subterrâneo e descobrem o Superhomem se masturbando lá dentro.

Luthor: What the fuck...?
Otis: Jeez.
Luthor: What the fuck is that?
Superman: I´m sorry.
Otis: He´s jerking off.
Luthor: No shit. I know he´s jerking off. I can fucking see he´s jerking off.
Superman: Please, it was a tough day… I´m sorry, I´m on my way out…
Luthor: Not so soon you´re not. You stay right here, pervert. I´m going to call the police.
Superman: Please, sir? Sir? It´s not necessary to call the police…
Otis: And tell him to clean everything up. Jeez.

Mais tarde Louis Lane perde um braço graças ao vício da heroína, e o Superhomem a carrega no colo, os dois atravessando nuvens ao som de P.J.Harvey. Ele a leva para a sua fortaleza (que fica num prédio abandonado e todo pichado no Bronx), onde ele tenta se matar tomando pílulas de kriptonita enquanto Lane se droga e vomita.

Superman: I´m such a fuckup... It´s all my fault, I´m such a fuckup… Sooner or later I fuck everything up, it´s just the way I am… I fuck everything up... I´m sorry, Lois, I´m so sorry…

Nesse ponto Lex Luthor e Otis entram na fortaleza do Superhomem e encontram os dois estrebuchando no chão, rolando nos jornais amassados que cobrem o concreto aparente, o uniforme de Superhomem todo coberto de vômito.

Luthor: What the fuck is that?
Otis: Jeez.
Luthor: Ok, that´s it. You go in there and kill them.
Otis: Hey, I´m not going in there, man.
Luthor: You take this, you go in there and kill them, Otis.
Otis: You crazy? There´s puke all over the place, man.

No final Otis acaba entrando, mesmo resmungando muito (“Fucking US$500 shoes, man, all messed up with Superman puke now. Shit.”), e tenta matar Lois Lane primeiro, mas o Superhomem se agarra na sua perna e tenta resistir, gemendo e gritando ao mesmo tempo, numa das mais terríveis e dramáticas manifestações de dor da história do cinema. Otis mata o Superhomem, e em seguida aponta a arma para a cabeça de Lois Lane, que diz, com o rosto coberto de lágrimas e vômito:

Lane: If you kill me, you´ll have killed the last orchid of God´s vast greenhouse in space, the last daffodil ever to be carried in the lap of the angels to the Virgin Mary herself. The last child of instant oblivion and eternal smile…
Otis: Hey, if you say so, lady. (atira) Whatever keeps your boat sailing, you know?


Não perca também o Superhomem de Walter Salles, no qual o berço do Superhomem cai na caatinga. O menino é criado por dois sertanejos, mas o destino faz com que ele se mude para Nova Iorque, onde se transforma no Superhomem. Um dia, ao ver uma partida da seleção brasileira em um restaurante de feijoada em New Jersey, Clark sobe na mesa, abre o paletó e grita: “Caralho, eu sou brasileiro! Eu sou brasileiro, porra!”, dando muitos socos no “S” de Superman e soltando cuspe. O que se segue é uma viagem pelo nordeste em busca de suas raízes e blá blá blá - ao som de Caetano Veloso em, para usar a linguagem das revistas de cultura, “trilha inspiradíssima”. 217 min.

vão lá ver as fotinhos no Alexandre Soares Silva

are you surfing from just pains?

Spam mesmo é afirmar: pedofilia não é crime e não dá cadeia. O que não deixa de ser verdade. E no entanto se move.

Puxaria a fila na porta do auditório, “tio, tio, dá logo um Oscar ou um Nobel pro Brasil, ele queria muito, sabe. É melhor pedir do que roubar”.

Mil pacotes, foi tudo o que Iscariotes levou. Queria trocar por 3 Milon.

Precisa nosso povo de prêmios? E fazer zunzum na cama?

Acham que democracia é voto, mesmo em competições de beleza, literatura, jogos aquáticos. Sorteio é ainda mais democrático.

Nome para blog? Oscar Wilde comeu meu tapete. E este: Bush gemendo e soprando.

saudade do presidente Figueiredo

28.10.04

NOVAS PROPOSTAS PARA UM MUNDO MAIS MELHOR

Uma reforma do Código Penal que inclua um capítulo novo, "Dos crimes contra a estética". Se me fosse dado escolher, colocaria nela o uso de pochete como crime hediondo, inafiançável. Minha proposta inclui campanhas de despocheteamento: imaginem dezenas de sujeitos vestindo moletom e mocassim caramelo, sem meia, na fila para entregar sua pochete na delegacia mais próxima. Todos seriam, é claro, presos no ato por atentado violento à estética, desacato ao bom gosto e mais uns três ou quatro artigos. É a festa da cidadania. Unha comprida do dedo mindinho também está na minha lista de crimes hediondos. E vocês, o que acham que deveria constar dessa grande reforma estética do Código Penal?

deposite sua sugestão na festa da democracia do puragoiaba

27.10.04

OS MACACOS DO MUSEU BRITÂNICO

Aquela conhecida tese proposta por Rutheford, para ilustrar a gratuidade na combinação das idéias que compõem as grandes obras (milhares de macacos, no saguão do Museu Britânico, datilografando ao acaso, acabariam por compor ao longo do tempo a obra completa de Shakespeare), ganha neste blog uma rica exemplificação, com o detalhamento do conteúdo de alguns trabalhos que brotariam desta instigante metáfora simiesca. Sente-se no primeiro galho e aprecie, leitor.

Teríamos, portanto, a peça "MacacBeth", onde o protagonista, ao ficar com a macaca (no caso, Lady MacacBeth), elimina brutalmente quem se puser em seu caminho rumo ao trono da Escócia. Outro destaque seria "Muito Barulho por Bananada", onde, farto de descascar a banana sozinho, Benedict ousadamente convida sua desafeta Beatrice a provar do longilíneo fruto. Teríamos também "A Megera Domesticada", onde Katharina, uma histérica macaca de auditório, é estudada pelo antropólogo Desmond Morris, que acaba se apaixonando e tempos depois publica a erótica obra memorialista "A Macaca Nua". Não podemos nos esquecer também de "Macaco Antônio e Cleópatra" e "Mico Andrônico", entre outras.

Mas não apenas o teatro shakespeariano seria reproduzido pelo staff de símios datilógrafos. A lei das probabilidades mostra que dali poderiam sair também clássicos da literatura ("A Montanha Mágica dos Gorilas", narrando a estadia da primatologista tuberculosa Diane Fossey num jardim zoológico suíço) e roteiros de sucessos do cinema ( "O Último Orangotango em Paris", onde um velho macaco em crise existencial empurra na jovem Maria Schneider uma média de pau com manteiga) e mais, muito mais. São, como o leitor pode ver, exemplos em penca.

Ah, certo. Não procede a insinuação de que o conteúdo deste blog poderia ser reproduzido na experiência do museu britânico. Na verdade ele é já é originariamente redigido lá.

Ao Mirante, Nelson!

O Início de Tudo

Tudo começou aos 16 anos, naquela fase de "eu vou mudar o mundo", "por que eu?" e "ninguém me entende" (se bem que esta última ainda esta valendo). Durante um fim de semana planejei tudo; como seria, onde seria, com quem seria e em que local seria. Tinha que preparar o terreno, especulei a minha mãe sobre minha decisão, que, obviamente foi contra, afirmando que ainda era nova, que menina direita e de família não deveria pensar nisso, que era uma coisa muito importante e me marcaria para o resto da minha existência.

Consultei meus amigos, pois aos 16 anos os amigos sempre têm razão, alguns eram a favor, outros completamente contra. O fato é que estava decidida, eu queria e pronto. E quando uma menina de 16 anos põe uma coisa na cabeça...

Lembro como se fosse hoje, foi numa quarta-feira. Menti a minha mãe dizendo que iria estudar na casa de uma amiga. Tirei cópia do RG. da minha irmã, que já contava com a almejada maioridade, e lá fui. Claro que fiquei receosa da dor, alguns falavam que doía muito, outros diziam que dava uma espécie de prazer indescritível. Fui lá, sentei na cadeira e fiz minha primeira tatuagem.

Tati Tatuada no E o Tema é... da outra semana

26.10.04

Vó Luíza

A gente chegava na casa da Vó Ada e fugia da Vó Luíza. Mas pelas orelhas, tínhamos que a cumprimentar. Minha bisavó não gostava de tomar banho. Se escondia na hora do banheiro e era até engraçado. Cheirava a velho, com os cabelinhos enroscados num coquinho, dava um trabalhão pra minha avó. Andava pela casa, baixinha e magricela, e, pelo que me lembro, não dizia coisa com coisa. Já peguei a velhinha variando. Mas, quando o crack da bolsa de 29 detonou a fortuna do bisavô e eles ficaram pobres da noite para o dia, foi ela quem sobreviveu ao ataque cardíaco do marido. Sem um puto no bolso, transformou a mansão em pensão para moças de bem e sustentou a filharada toda fazendo comida e servindo na porcelana chique, presente de casamento. Fomos visitá-la num sanatório para velhinhos bem tratados, minha última lembrança dela. Corria pelos corredores fugindo da gente. Acho que quando ela viu que tinha cumprido suas obrigações pensou: agora eu relaxo. Apesar da aparência austera, suas corridas e fugas eram na verdade risadas e gargalhadas. Ela estava era brincando de pegar...

as partes do corpo

25.10.04

O Elogio do Tédio

"O problema do homem moderno não é a maldade dele. Ao contrário, ele prefere, no conjunto, por razões práticas, ser bom. Simplesmente, ele detesta se entediar. O tédio o aterroriza embora não exista nada mais construtivo e generoso do que uma boa hora cotidiana de tempo morto, de instantes sacais, de encheção paralisante, sozinho ou acompanhado. Só o tédio permite gozar o presente, mas todo mundo procura o contrário: para não se chatearem, os ocidentais fogem através da televisão, do cinema, da internet, do telefone... Eles nunca estão no que fazem, visam apenas por procuração, como se fosse uma desonra ficar apenas respirando aqui e agora. Quando se está na frente da televisão, ou na frente de um site interativo, ou telefonando pelo celular não se vive.
Como fugir do divertimento? Enfrentando a angústia.

O mundo é irreal exceto quando é sacal."
- Frédéric Beigbeder

Com alguma experiência no assunto - ao estar literalmente coçando o saco por sete dez meses ininterruptos - eis que vos intero desse bem-ou-mal que é o tédio. Não o tédio endomingado dos trabalhadores, da falta de programação na televisão, do esgotamento de ingressos do show de sábado, da ausência de som, do olhar vago. Não o tédio adolescente dos que ficaram em casa no final de semana, porque mamãe queria que estudassem Química Orgânica para a prova de segunda-feira. Não o tédio congelado em plano, feito quadro, por um minuto de reflexão. Não o tédio passageiro. O tédio vago. O tédio provocador. O tédio impulso. O tédio magro.

Falarei do tédio induzido, do tédio provocado, do tédio cutucado com vara curta, do tédio longa-metragem, do tédio sem frescura.

Porque é assim que me sinto muitas vezes, querendo sem querer, sentado em minha cama, lendo um livro interrompido, ligando a televisão, me levantando para trocar de canal só para fazer exercício porque deixei o controle-remoto cair debaixo da cama, desligando a televisão, abrindo a porta, mudando de idéia, fechando a porta, abrindo a porta de novo, andando pelo corredor, checando se minha mãe vê televisão no mesmo lugar, se minha irmã janta ao chegar da faculdade sentada na mesma cadeira, voltando para o quarto, sentando na cama, abrindo o livro interrompido.

Com vontade de estourar a cabeça na quina de todos os móveis para ver se algo de novo acontece, se o sangue vai espirrar pela tela da televisão desligada, se a dor será muita, quantos pontos vou levar na testa, quantos analgésicos vou ter de tomar para dormir tranqüilo às duas da manhã. O tédio enclausurado, fechado, enjaulado, enlouquecedor. O tédio meia-noite. O tédio demente.

Uma vez em estado de tédio, difícil recompor-se ao estado normal, é uma injeção de anestesia, a dor lateja, quer gritar, escorrer e não consegue.
Sei que não é muito bom provar do pote, sei que é causa provocada, antes alarmada e, talvez por isso, seja tão perigosa mas, ao mesmo tempo, nos dá o valor exato do divertimento, do tempo-à-toa, sem conta no relógio.

Diria que a vida de vagabundo é doce, melhor do que se imagina e eu a adoro. Nada como dormir às três pensando no que não vou fazer amanhã, ou no que vou deixar para depois de amanhã. Nada como ouvir música na segunda sem pensar no trabalho de terça, na prova de quinta ou no relatório de sexta. Nada como não saber que dia é hoje ou em que mês estamos. Mas não por sete dez meses.
Seria ótimo por uma semana, suficiente por três, mas tedioso por sete dez meses.

Então quero arranjar um trabalho. Na locadora. A locadora é aqui perto, a um quilômetro de casa. Me daria bem na locadora, gosto de filmes, sei dos novos títulos, poderia ler alguma revista importada, decorar o imdb, persuadir os clientes a alugar filmes terríveis. Quem sabe procurar algo nesse negócio que acaba de abrir na minha rua. Deve ser bom trabalhar na rua de casa. Sem gastos com transporte ou almoço. Alguns passos e estaria de volta. E tchum! Meu mundo encolhe trezentos metros a cada dia que passa.

Primeiro era o universo, e o céu não era o limite. Com o sonho arruinado de me tornar astronauta, veio a estratosfera. Ainda era o mundo, com as chances de me tornar Imperador Geral de Todas As Nações, mas veio Bush Jr. Depois era a América com meu talento para a música e a minha aptidão nata para a guitarra e aí veio a realidade. Hoje é o meu quarto.

Amanhã o meu umbigo. Depois o meu fígado, meus rins, minhas tripas, toda a minha carne e devoro-me com verocidade porque nada me resta, nem o infinito, nem a juventude dos meus 18 anos. Só eu, eu mesmo e minhas tripas. Pensamentos jogados ao vento, cacoetes, idéias absurdas, sensação de sede, sudorese, calafrios. Poderia ser catalogado ou identificado como doença psicótica de ordem gravíssima, mas não é nada não, é só tédio.

"A vida é aquilo que nos acontece enquanto estamos ocupados com outros planos." - John Lennon

Thiago Capanema Não vá se perder por aí

Sex on the beach

Setecentos quilômetros de BR-116 esburacada e chuva, tudo isso ao som de uma fita do Tears for Fears comprada em posto de gasolina, a única música não sertaneja que encontraram na estrada. Trocavam duas palavras a cada 50 quilômetros –ele, ao volante, atento ao tráfego e remoendo, remoendo; ela, fazendo que dormia no banco de passageiro. Casal moderno e sempre repletos de trabalho, passaram seis meses planejando férias sincronizadas, negociando escalas, horários e prazos com chefes e clientes, apaziguando mães preocupadas, arrumando quem aguasse as plantas, alimentasse os gatos, cuidasse dos apartamentos. Agora, depois de um mês de praia, aquele silêncio todo no carro, enquanto as tias fofinhas repetiam, repetiam, repetiam “these things/ that I’ve/ been told/ can rearrange/ my world/ my doubt/ but inside out...”

O plano secreto dele, no dia da partida, era esperar a última noite das férias e propor que fossem morar juntos (com direito a anel, barato mas honesto). Já ela planejava encontrar, na intimidade do ócio e da praia, um jeito de contar que tinha dormido com outro, em viagem de trabalho, mas que o amava. Enquanto ele meio sonhava e meio temia o casamento, ela meio temia falar sobre o amante (com quem meio sonhava). Alugar o tal “chalé” fora uma idéia de jerico, aliás. “Pertinho da praia”, disse a dona. Dois quilômetros, e de morro, constataram os turistas. Na chuva, o forro vazava; ao sol, o teto fervia. Ele, metido a macho, paulistano, recusou o filtro solar: uma semana de bolhas. Ela, usualmente tarada, descobriu que não conseguia furumfar direito com o namorado, por sentimento de culpa. No passeio de escuna, só tocava É o Tchan. O banana-boat virou. O rango local era ruim e caro. Uísque, só Natu Nobilis.

Os últimos quatro ou cinco dias até que foram bons, os dois ponderaram, acostumados ao desconforto ou nostálgicos com antecedência pelo final das férias. Dois dias antes da volta, ele decidiu que faria, sim, a proposta. Foi naquela noite que ela contou. Ele saiu do chalé, pegou o carro, dirigiu até a praia, jogou o anel no mar. Barato, mas o prejuízo doeu, mesmo assim. Dormiu no Uno. Voltou ao raiar do dia, e encontrou as malas prontas e a namorada de cara inchada depois de uma noite de choro. Esqueceram as fitas no chalé, pararam para encher o tanque e ele comprou o maldito cassete das tias fofinhas. Passados 10 anos, ele ainda range os dentes quando ouve “Working Hour”. Da viagem, só aprendeu* que, ao contrário do que dizem os filósofos de botequim e letristas de MPB, o arrependimento pelo que não se faz é muito melhor do que o arrependimento pelo que se fez. (Também aprendeu que, ao viajar com a namorada, melhor levar um iPod. Just in case.)

* Se ela aprendeu alguma coisa? Aprendeu. NEVER kiss and tell.

Noronha, o meditabundo

Salvador, 20 de outubro de 2004, 1h15min

Estava agora mesmo na varanda deste quarto de hotel, olhando o mar discutir com as pedras lá embaixo. Uma briga antiquíssima, anterior à existência de vida na Terra.

Eu poderia agora dizer algo pernóstico como: o mar vence sempre, é o masculino que seduz e aos poucos penetra a terra, fêmea que ao mesmo tempo resiste e cede às investidas do macho impetuoso. Mas como nunca maltrato meus leitores com metáforas burras e pretensiosas (é sempre uma coisa ou outra), digo apenas: enquanto olhava a briga lá embaixo, lembrei da morte. Da minha morte, para ser exato. Eu vou morrer — hoje mesmo, semana que vem, daqui a cinqüenta anos — e nunca mais poderei assistir ao mar quebrando na praia (é bonito, é bonito). Minha morte afetará a meia dúzia de pessoas, talvez nem isso. E as ondas continuarão a chocar-se contra o continente, indiferentes ao fim de mais uma breve existência, e sem saber o quanto eu gostava de ficar de longe, só olhando seu movimento sinuoso.

Poucas vezes me senti tão só.

Marcurélo Jesus, me chicoteia!

24.10.04

GATOS, CÃES E PASSARINHOS

Quem cuida de gato ama sua solidão. O felino fica quieto pela casa, como um ruído do osso, um ruído interno do corpo. Enovelado em suas memórias fundas, tão fundas que requer concentração para subi-las. Flor assustada, jardim móvel. Nem com um nome se torna doméstico. Confidente que censura com compaixão, que compreende com piedade. Não é um animal que tosse, no máximo espirra. Seus olhos claros, pirilampos dentro de um pote. A plumagem clara ou escura nasceu como ouvido da noite. Sua superação é beleza.

Quem cuida de cachorros gosta de escapar de sua solidão. Sair para passear, andar com ele com coleira, dividir o cumprimento, o tapete da rua. Cão é gastar sapato, cheirar árvores e grama, descobrir onde há um vento para caçar pássaros, onde há estrelas úmidas, onde há parede para escorrer lagartixa. O cão é dispersivo, late para estar em todos os lugares e não está em nenhum, diferente do gato. Alerta, fala mais do que escuta. Pede conselhos para adormecer intacto em sua dor ou à espera da dor. É leal como um copo de água. Tosse como gente grande. Apaga o retrato no cigarro. Os grandes olhos têm bigodes, feitos para a despedida. Sua retração é verdade.

Quem cuida de passarinhos gosta de vigiar sua solidão, gosta de pousar, não apetece sentar ou permanecer de pé. A gaiola é um aquário de janelas, onde o mundo se reduz a um punhado de alpiste fora da mão. O passarinho rema sua plumagem com um único remo: o bico. Canta com o canto do olho. Não está desesperado, muito menos tranqüilo. Solidão nervosa, que intimida somente com o pulo do trapézio, sem revólver, faca ou punhal. O pássaro é o gomo primogênito, o barulho de uma lâmpada. Um parente que te visita com mala. Cinzas que choram rindo, longamente longe das brasas.

Fabricio Carpinejar

23.10.04

MULHERZINHA

Ia escrever um post de ódio às mulherzinhas, mas assim que apertou o primeiro Tab, o esmalte da unha do indicador esquerdo lascou. Saiu para buscar um vidrinho de esmalte no banheiro; enquanto procurava o certo entre tantos outros naquela maldita gaveta, o telefone tocou. Pegou um deles e foi atender: era a secretária da terapeuta querendo desmarcar a consulta da semana. A Dra. Suzana não ia poder estar atendendo por motivo de viagem. Quando desligou, percebeu que já estava retocando a unha com a cor errada. Pegou a acetona e o algodão e começou a retirar o esmalte de todas elas. O telefone tocou novamente: era o namorado, para confirmar o jantarzinho com o casal de amigos. Hoje? Hoje. A promoção, esqueceu? Esqueceu. Não tinha ido ao salão fazer escova, nem hidratação. E as unhas estavam horríveis! A pele estava ressecada e nenhuma roupa ia servir porque, claro, ela estava gorda. Foi escorregando de mansinho na parede até sentar-se no chão. E desatou a chorar.


GO ON AND FOOL ME

Considerando as poucas exceções, pessoas são muito mais interessantes quando desconhecidas. Há graça no imaginado, nas suposições que surgem durante o observar à distância, no criado detalhadamente durante as longas noites de insônia passadas debaixo do edredon - além, claro, dos arrepios que a certeza do mistério proporciona -, algo que se perde totalmente logo ao fim da resposta à pergunta mais banal.

- E como você se chama?
- Valéria.

Nunca daria certo. Para ele, ela sempre teria cara de Priscila.


Garota Urbana em amente.capta

Princesa

Não era a mais bela, nem a mais carinhosa. Tinha um olhar terrível, assustador. Gostava de ficar só, assitia tudo de longe, nunca demosntrou fraqueza, nem dor. Era pequenina, uma verdadeira bola. Mesmo assim não miou, não gemeu uma vez sequer quando seus 6 filhotes vieram.

Não é brincadeira, nem exagero. Eu vi 5 deles nascerem e ela continuava firme como sempre. Os dias se passaram e ela parecia a mesma, sem se importar com seus filhotes. (que infelizmente agora são 5) Era só impressão, se você chegasse perto deles, ela surgia com um tiro para protegê-los.

Ela nunca foi de comer, mas com deveres a cumprir a fome sempre aparece. Preparei um belo prato e levei até seu ninho. Os garotinhos estavam lá, dormindo um em cima do outro; ela deveria estar lá na frente de casa tomando um ar puro. Ela adorava fazer isso, ficar em frente de casa bem quieta no lugar mais escuro possível sem mover uma pata sequer.

Quando abri a porta ela não veio ao meu encontro como o de costume. Chamei-a mas não foi preciso repetir o chamado. Eu a vi no meio da rua, deitada. Olhei o suficiente para saber que era um gato, mas você sente quando acontece. Chamei meus pais e eles confirmaram.

Mal pude imaginar que a dor maior viria somente depois: 5 gatinhos de apenas 7 dias miando desesperados atrás da mãe. Quando você se aproxima deles, eles miam para chamar a mãe e esta os protegê-los. Se ela não aparece, eles miam cada vez mais e seus coraçõezinhos batem cada vez mais rápido de medo.

Talvez eles não sobrevivam, disse a veterinária. Tentamos dar mamadeira para eles. No começo eles recusaram, cuspiam tudo, engasgavam. Depois acabaram aceitando, uns mais facilmente que os outros. É indescritível a sensação de vê-los mamar. É algo muito forte e bonito. Você, ao segurar a mamadeira, sente a força de suas sugadas. Sente que eles estão bem, seguros por estarem em seus braços.

Um Ponto Oito

Frase do dia (tralvez da semana)

FAMILIA MUDA VENDE SURDO

Chez Nigro's - Movimento pela Insanidade Coletiva

22.10.04

Pequeno tratado sobre a mortalidade do amor

Todos os dias morre um amor. Quase nunca percebemos, mas todos os dias morre um amor. Às vezes de forma lenta e gradativa, quase indolor, após anos e anos de rotina. Às vezes melodramaticamente, como nas piores novelas mexicanas, com direito a bate-bocas vexaminosos, capazes de acordar o mais surdo dos vizinhos. Morre em uma cama de motel ou em frente à televisão de domingo. Morre sem beijo antes de dormir, sem mãos dadas, sem olhares compreensivos, com gosto de lágrima nos lábios. Morre depois de telefonemas cada vez mais espaçados, cartas cada vez mais concisas, beijos que esfriam aos poucos. Morre da mais completa e letal inanição.

Todos os dias morre um amor. Às vezes com uma explosão, quase sempre com um suspiro. Todos os dias morre um amor, embora nós, românticos mais na teoria do que na prática, relutemos em admitir. Porque nada é mais dolorido do que a constatação de um fracasso. De saber que, mais uma vez, um amor morreu. Porque, por mais que não queiramos aprender, a vida sempre nos ensina alguma coisa. E esta é a lição: amores morrem.

Todos os dias um amor é assassinado. Com a adaga do tédio, a cicuta da indiferença, a forca do escárnio, a metralhadora da traição. A sacola de presentes devolvidos, os ponteiros tiquetaqueando no relógio, o silêncio ensurdecedor depois de uma discussão: todo crime deixa evidências.

Todos nós fomos assassinos um dia. Há aqueles que, feito Lee Harvey Oswald, se refugiam em salas de cinema vazias. Ou preferem se esconder debaixo da cama, ao lado do bicho-papão. Outros confessam sua culpa em altos brados, fazendo de pinico os ouvidos de infelizes garçons. Há aqueles que negam, veementemente, participação no crime, e buscam por novas vítimas em salas de chat ou pistas de danceteria, sem dor ou remorso. Os mais periculosos aproveitam sua experiência de criminosos para escrever livros de auto-ajuda com nomes paradoxais como "O Amor Inteligente", ou romances açucarados de banca de jornal, do tipo "A Paixão Tem Olhos Azuis", difundindo ao mundo ilusões fatais aos corações sem cicatrizes.


Existem os amores que clamam por um tiro de misericórdia: corcéis feridos.

Existem os amores-zumbis, aqueles que se recusam a admitir que morreram. São capazes de perdurar anos, mortos-vivos sobre a Terra teimando em resistir à base de camas separadas, beijos burocráticos, sexo sem tesão. Estes não querem ser sacrificados, e, à semelhança dos zumbis hollywoodianos, também se alimentam de cérebros humanos, definhando paulatinamente até se tornarem laranjas chupadas.

Existem os amores-vegetais, aqueles que vivem em permanente estado de letargia, comuns principalmente entre os amantes platônicos que recordarão até o fim de seus dias o sorriso daquela ruivinha da 4a. série, ou entre fãs que até hoje suspiram em frente a um pôster do Elvis Presley (e, pior, da fase havaiana). Mas titubeio em dizer que isso possa ser classificado como amor (Bah, isso não é amor. Amor vivido só do pescoço pra cima não é amor).

Existem, por fim, os amores-fênix. Aqueles que, apesar da luta diária pela sobrevivência, das contas a pagar, da paixão que escasseia com o decorrer dos anos, da TV ligada na mesa-redonda ao final do domingo, das calcinhas penduradas no chuveiro e das brigas que não levam a nada, ressuscitam das cinzas a cada fim de dia e perduram - teimosos, e belos, e cegos, e intensos. Mas estes são raríssimos, e há quem duvide de sua existência. Alguns os chamam de amores-unicórnio, porque são de uma beleza tão pura e rara que jamais poderiam ter existido, a não ser como lendas. Mas não quero acreditar nisso.

Um dia vou colocar um anúncio, bem espalhafatoso, no jornal.

PROCURA-SE: AMOR-FÊNIX
(ofereço generosa recompensa)

ALEXANDRE INAGAKI
Pensar Enlouquece, Pense Nisso

É fácil

É fácil ser um grande escritor, quando se é o Chico Buarque.

Acorde cedo, ainda deitado espreguice. Coce o umbigo, retirando o fiapo de algodão que é gerado alí diariamente, e pense: caralho, eu sou o Chico Buarque. Levante-se. Vá ao banheiro lavar o rosto, veja que belos olhos azuis. Vista um shorts e o tênis de corrida.

No calçadão, ande a vontade. O status de caminharem naturalmente na mesma praia que você impede os pedestres do Leblon de virem te incomodar com pedido de autógrafos. Isso e o fato de que são seis da manhã e a praia está vazia.

De volta ao apartamento, tome o café e um bom banho, que você pode ser imortal, mais ainda sua. Pegue os jornais do dia. Veríssimo, Laerte. Praticamente todo o resto é igual há cinquenta anos, folheie. De almoço, carne, batatas e uma salada qualquer.

Aguarde no sofá o almoço passar. Se necessário, cochile. Sente-se à maquina (que hoje é um computador), coloque os óculos. Releia o que escreveu ontem, acrescente pequenas modificações e mais uma ou duas páginas. Salve.

Ainda na cadeira, aprecie o trabalho do dia. Como o tempo passa rápido, não é não? Faça um lanche leve. Apresente-se para dormir. Essa vida de grande escritor dá um sono.

fserbcombr

21.10.04

Desconstrução

Não, meu amigo, o meu desconstrutivismo não é proposital, é acidental. De fato, eu acredito que nada pode ser pior para uma pessoa fazer do que desconstruir a outra. É a morte do outro, você o desconstrói e depois, quando o outro estiver convencido de que não é aquilo que pensava ser, você o convence de que ele é algo que você diz que ele é. É o pior dos assassinatos, a pior das mortes, fazer uma pessoa duvidar de si mesma, de quem ela é. Believe me, been there, I know.

MadTeaParty

HERZOG

23 de outubro de 1975. Completei três anos, meu aniversário abria a boca em Porto Alegre com seus dentes de leite. A inocência sem ré. Andava somente para frente. Não dissimulava, não mentia, desconfiava do velho do saco, mas não olhava debaixo da cama para não ser apanhado. 24 de outubro de 1975. Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura, vai à sede do Doi-Codi em São Paulo para prestar esclarecimentos sobre a sua atividade política. Ainda acreditava que seria um depoimento. Ainda acreditava que logo estaria em casa. Tiraram suas roupas. Fecharam a porta. A sauna sem outro bafo que não o do corpo. Lá está ele, terrivelmente só. Nem suas dores o acompanham. Nada. Segura a cabeça e esconde o rosto. Sua nudez está no rosto mais do que no corpo. Sua nudez é o rosto, corpo do corpo. Rememora a mulher talvez, o que teria dito para ela pela última vez e se recrimina de ter falado um 'até logo' sem memória, de faltar com o pressentimento. Faltou dizer uma vida. Está uma vida por dizer, mas nunca faltou com a verdade. O medo é tão forte que não sente o cheiro de nada, nem de si, muito menos das entranhas da noite, dos braços no rosto. Um homem desesperado é um desenho feito por uma criança. A tinta redonda em dois olhos. Duas corujas nos olhos. Resumido em traços breves, espaçados. Herzog. Sem colchão no estrado, sem estrada. Não irá dormir, bem sabe. Não irá acordar. Deixaram o relógio para mentir seu tempo. Zombam com fotografias. É sua derradeira foto vivo. Não ri, não está com a família para rir. Está fechado em uma palavra. O que faltou dizer para sua mulher. Escreve na parte escura dos lábios. Na mesa dos lábios. Descreve o que sua voz apanha. Escreve com o dente da frente. Queria ter dentes de leite como um desenho de criança, para ver os outros chegando. Para deixar debaixo de uma escada e receber a recompensa das formigas. Vlado. Ali fora é Vladimir. Na porção escura dos lábios, na mesa dos lábios, responde apenas ao apelo Vlado. Boçais. Todos boçais e frios e sádicos e de ferro roubado nos ossos. Não insulta. Não queimará o toco da vela de suas mãos para jogar luz ofendida. Prefere proteger a luz com os braços, disciplina o facho a permanecer. A chama da vela do rosto contra o hálito das frestas. Sua nudez impassível, impossível. É ele, um homem completando os cabelos com as mãos. Completado, não consumido. O último gole de seu corpo será ele a tomar, mais ninguém. O último gole do corpo - Deus não alcança. O último gole da respiração é de quem perde a morte para sempre. Pegaram suas roupas. Choro ao olhar a foto dele no jornal. Não o entendo. Meu pai arranca a folha, assustado. 25 de outubro de 1975. Foi o velho do saco, pensei. Amarrado em uma janela menor do que sua altura. Uma janela que não nasceu para o suicídio, que nunca será árvore e lustre de pássaros. Foi assassinado pelas suas roupas. Sua nudez foi assassinada pelo seu cinto. Aquele cinto que afivelou de manhã para amar o dia. E que demorou a escolher. Desamaram Herzog com o cinto. Uma mão familiar de seu próprio couro. O cinto. Fora de sua altura, forjado. Um cinto que nunca fechará sua morte, que não é cova para cobrir sua morte, lençol para tapar seu abandono. Não será enterrado perto das pedras. As pedras falam dormindo. Não foi ele que se matou, não foi ele que morreu, foi a consciência de que mesmo no meu aniversário alguém pode morrer, que não é proibido matar a inocência em meu aniversário.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

AO MIRANTE, WASHINGTON!, DIRETO DE NELSON

Após manifestar-se, no último debate, contra a união civil de células-tronco e a utilização de homossexuais para pesquisa de fins, o presidente George W. Bush confirmou sua determinação em manter as armas químicas no Iraque, insistindo que "Collin Powell ocultava, sim, coalizão de tropas no arsenal bélico". Afirmou apoio incondicional ao estado de secretário Saddam Hussein e reiterou sua cruzada pessoal contra o América e o compromisso de manter uma terror livre. Sobre o candidato John Rumsfeld o presidente reproduziu uma piada que, segundo ele, teria partido do defesa de secretário Donald Kerry: "O filisteu precisou de uma queixada de burro para derrotar os Sansões, já aqui nas eleições temos a queixada de um lado e o burro do outro". Depois, mexendo no ponto eletrônico, murmurou: "Como? Essa é uma das democratas dos piadas?" E acusou sua imprensa de secretário Nelson Moraes de estar embaralhando todo o texto.

Ao Mirante, Nelson!

Cobiçarás a mulher do próximo

Não vejo nenhuma razão para deixar de cobiçar a mulher do próximo, pois perdem as duas partes. Perdem porque a diminuição da concorrência faz a qualidade geral baixar, e a estabilidade gera monotonia, posto que vai contra a natureza humana* -- e se você quer ir contra a natureza, ao menos dê uma razão decente, o que não é o caso.

(*) como tia Sei já dizia, a maneira pela qual os homens** se afastam duma mulher bonita e prestativa para se embelecarem por uma qualquer é inaudita...
(**) especialmente os canibais libertários

Se cobiço a mulher do próximo, do vizinho, dos amigos, do meu irmão, não é por perversão moral. Pelo contrário, é uma questão de princípios. Tudo que desejo, na verdade, é o bem comum, e a virtude e a glória de minha nação.

dies iræ

19.10.04

Cavalheirismo 2.1

Em blogue de mulézinha e em conversa com amigas, aparece sempre o papo de que cavalheirismo já era, com o inevitável corolário de que as mina exigem ser tratadas como iguais mas continuam esperando que o cara abra a porta do carro*, leve flores, responda “não” à fatídica pergunta sobre a calça-que-deixa-gorda e preferencialmente pague os jantares. Eu até simpatizo com a posição das damas, no caso –se bem ela equivalha a dizer que romantismo, alas, é mesmo teatro (a idéia faz sentido, convenhamos: já que elas vão mesmo fingir todos os orgasmos*, custa o mano, de sua parte, fingir que não saiu da roça anteontem?)

Estas mal-traçadas** não nascem, portanto, de qualquer ânimo polêmico, mas me parece que cabe um lembrete rápido sobre a versão 2.1 do cavalheirismo, que tantas vezes passa despercebida no lufa-lufa das aflições cotidianas. Se o seu beau, por exemplo, a escoltou ao cinema para assistir a nhonhas como The Hours, The English Patient ou qualquer filme do Almodovar, saiba, madame, que é estóico cavalheirismo que o move. E se ele se absteve de pegar filme do The Rock na locadora e topou assistir com você a qualquer coisa contendo Meryl Street, madame tem em mãos um príncipe entre os homens. Aquele jantar com a sua amiga que falava o tempo todo em numerologia? Se ele não riu uma vezinha sequer, there you go: gentleman. Não vou nem mencionar os óbvios sacrifícios à causa do amor que os homens fazem a cada dia sem reclamar –muito-, como Riverdance, Stomp, peça de Tchêcóv traduzida pro português e falada em carioca, sair pra dançar, acompanhar madame em expedição de compra de sapatos, visitar amigas (dela) recém-saídas da maternidade que acham que cor de cocô do bebê é assunto lícito de conversação: todos aqueles marmanjos estão lá, mes dames, por amor, e sorriem até ficar com cãibra no maxilar.

É claro que os motivos desse cavalheirismo não são nobres. Basicamente, os mano fazem essas coisas contando que o padroeiro do homem obsequioso, São Bráulio Jojoba, os recompense com a munificência merecida quando Madison Bridges acaba. Por isso, mes dames, assim que saírem com o rapagão do show da Adriana Calcanhoto, reconheçam a dedicação acima e além do dever que a presença dele demonstra e, tão logo ele tire o algodão do ouvido, whisper sweet nothings in his ear e proponham vestir alguma coisa mais confortável. Os cavalheiros 2.1 penhorados agradecem.

* A verdadeira igualdade entre os sexos, aliás, é fazer como o meu amigo e adevogado Arthur, que, em situação de pé na bunda, respondeu “eu também fingi os meus”.
**Expressão que também aplico às desavisadas damas que me aquinhoam com seus favores.

Noronha, o meditabundo

A Seita das Duas Baratas.

(…)

A idéia me surgiu numa noite de insônia e angústia. Eu pensava: cada um diz que a vida após a morte é de um jeito, e muitos são exclusivistas: só seguindo determinada religião sua vida no além vai ser bacana, seguindo qualquer outra (ou nenhuma), você é condenado a algo bem desagradável. Passar a eternidade sendo um cossaco com hemorróidas, por exemplo. Juntei a essa questão a minha absoluta ojeriza às baratas, e voilá!, surgiu a Seita das Duas Baratas.
Funciona assim: quando alguém morre, reencarna não como uma, mas como duas baratas. Sabem como é, baratas estão sujeitas à morte por envenenamento, ou pisoteadas por batalhões de cossacos com hemorróidas. Então você morre e reencarna em duas baratas: uma delas vive a vida de barata, cheia de aventuras e coisas nojentas; a outra fica quietinha lá no ninho, como backup. Essa barata de contingência só convive com as de sua estirpe: seria muito arriscado ter contato com as baratas normais hoje em dia, com todo mundo usando Matox. Pois então, o papel das reencarnações salteadas (uma como ser humano, outra como duas baratas) é de queimar carma rapidinho: um dia Deus percebeu que certas pessoas eram tão ruins, mas tão ruins, que levaria tempo demais para pagarem pelo que fizeram. Sendo assim, encomendou uma pesquisa para saber que tipo de vida faria esse carma ruim ser gasto mais rápido, e conclui-se que as baratas dariam conta. Então O Todo-Poderoso, em sua infinita sabedoria, dotou as baratas de grande resistência às condições mais desfavoráveis, e as incumbiu da missão de levar toda a humanidade mais rapidamente aos pés de Seu Trono, que fica entre os querubins, com Seu Amado Filho assentado à direita e toda uma comitiva de cossacos para recepcionar os recém-chegados.

(…)

Jesus, me chicoteia!

Não viverei entre cacos de vidro, entre navalhas, entre pontas de lança envenenadas de culpa. O que me pertence nasce e morre comigo, foi inventado em meus olhos e dorme sob mechas dos meus cabelos, se nutre do meu ventre. Não viverei entre víboras, entre escorpiões, entre ratos de lembrança. Não viverei aqui, à míngua, não tenho âncora, tenho asa. Não viverei entre lixo, entre restos, entre escombros do teu passado. O que sinto é profundo mas não traz em si a covardia de uma raiz fincada, sou móvel, líquida, fluida e instável, porque viva. Não viverei entre galhos, entre espinhos, entre as folhas mortas do que descartaste. Não tenho freios, tenho partidas. Não tenho sossego, tenho ardor. Não viverei entre areia, entre pedras, entre abismos de promessas que se foram. Meus trilhos se trifurcam, quadrifurcam... e eu sigo por todos eles. Não viverei entre miséria, água pouca, migalhas de desejo. Minha mesa é farta e eu mesma me darei de comer.

Não Discuto

18.10.04

Brasília à moda de Calvino

(…)

A maioria das cidades apenas existe; Brasília não; Brasília assemelha-se a um símbolo inscrito em uma superfície mitológica, uma planura matematicamente perfeita que mal e mal separa a terra do céu, como se fôra o trabalho de uma divindade negligente para com seus primeiros deveres de Criador.

(…)

SMART SHADE OF BLUE

SIX YEAR HITCH

ou HAPPY ANNIVERSARY TO US

Foi assim : sete anos atrás, ele muito a fim de mim, mas disfarçando porque os amigos querendo brincar de matchmakers o irritavam. Eu muito a fim dele, mas sem mostrar porque eu nunca fui mulher de dar o primeiro passo. Como parecia que ele não queria nada comigo, mas também era uma pessoa sensacional com quem conversar, beber, rir e tudo o mais que se pode fazer de bom de roupa, eu me conformei em sermos amigos. E fomos muito amigos, sempre os últimos a ir embora, sempre esperando os garçons começarem a empilhar as cadeiras e mesas pra pedir a saideira (ele chope, eu uísque ou batida de vodka). Eu, no máximo de assanhamento possível para minha tímida pessoa, mandei pra ele um CD do Chico que ele não tinha. Ele me mandou um livro. Tanto um quanto o outro com dedicatórias fofas - porém decentes. E continuávamos amigos.  Um dia, saindo de um barzinho, chuviscando, os dois malucos saíram cantando e dançando na rua (Singin’ in the rain, claaaaro) e quando ele me levou até o carro, se despediu com um abraço. Não, não um beijo, só um abraço, mas daqueles que dá vontade de fincar uma bandeira no peito do rapaz e declarar propriedade, abuso, uso, fruto em natura e em compota com calda e chantilly. Mas ficou nisso. E continuamos amigos. Até o dia em que, aniversário da minha irmã – comemorado em barzinho, porque nós éramos todos uns paus-d’água sem-vergonha – o céu caiu. Choveu como se Noé fosse passar dali a dois minutos procurando casaizinhos animais pra um passeio de iate. Na hora de ir embora, nada da chuva diminuir. Um lago ocupava uns três metros entre a calçada e a rua, e eu parada fazendo beicinho, com dó de colocar meus sapatinhos de boneca novinhos na poça. O que pensam vocês que ele fez ? Me pegou no colo (eu pesava muito, mas muuuuito menos na época) e fez melhor que Moisés separando as águas : enfiou o pé na lama sem piscar e me carregou além da enxurrada, até o outro lado da rua. Por mim, podia ter carregado direto até o quarto dele, hohoho. Sete meses depois disso, a gente se casou. Nós nunca concordamos muito sobre a data exata em que começamos a namorar, mas pra mim foi naquele dia. Não é de se espantar que eu ame tanto a chuva. É que no meu coração está sempre chovendo, eu sempre peso cinqüenta quilos e o gatinho mais lindo do mundo continua me levando no colo até um lugar aonde eu não quero chegar nunca, nunca, só pra aproveitar o passeio mergulhando o tempo todo nesses olhos lindos, dourados e melados que ele tem.

Cyn City

QUANDO ELA DANÇA TODO MUNDO SE AGITA E O POVO GRITA O SEU NOME SEM PARAR

Show do Sidey Magal ontem... Vila Olímpia e eu nem aí, montei uns birotes de mamuxca na cabeça, preguei uma rosa gigante com gotas de orvalho nos cabelos e me joguei!

Resultado do mico?

Fui convidada pelo próprio Magal pra dançar Sandra Rosa Madalena com ele no palco...

Que mais?

Tinha uma outra mega rosa na boca... e dei pra ele... como?

Passando da minha boca pra dele!

E o meu sangue ferve por você!

Evão do Caminhão

15.10.04

Tonight I'll not get loaded

Sabe aquele cara que soa a nota cautelar quando o amigo decide misturar Underberg com conhaque Palhinha? Muito prazer, sou eu. Desde que me lembro, cabe a mim fazer a pergunta óbvia nos momentos insensatos. E todo mundo, claro, passa a contar com isso. Não é que eu não beba ou que eu não cometa lá minhas imprudências eventuais, mas é sempre tudo calculado: imprudências prudentes, se me permitem o pecadilho lógico. Quando o amigo, seis uísques mais leve, me pergunta o que eu acho da moça do outro lado do bar por quem ele se apaixonou perdidamente nos últimos três minutos, eu nunca estou bêbado o bastante pra aplaudir o ímpeto sem antes admoestar, “linda, Gus, mas ela é homem”.

Isso podia –devia- me fazer o corta-barato da turma, se eu tivesse uma turma. Mas não é como se eu andasse atrás das pessoas com um conselho permanentemente em riste (ops). E o pessoal até aprecia o serviço, let me add –“pode beber, meu, o Fudílson dirige”. Ao que parece, sou constitucionalmente incapaz de enfiar o pé na jaca. Nunca caí dormindo bêbado embaixo de uma mesa antes do final da festa, como o japs. Nunca esqueci o cigarro aceso ao lado da pólvora das bombinhas, como o Silvinho. Nunca tomei chá de cogumelo catado em cocô de vaca na beira da estrada, como o Hugo, e terminei no pronto socorro. Sonho com esse tipo de release, às vezes. Quem não? Não é exatamente o famoso “jogar tudo pra cima”, largar a minha precária respeitabilidade pequeno-burguesa e vender pipa em São Chico, mas sim um desejo de insanidade temporária, como adevogado americano alega em filme para justificar os mano que esquartejam mulé e seis filhos. Por 15 minutos, uma noite ou dois meses, deve ser ótimo ignorar as conseqüências.

Mas alguma coisa em mim torna impossível chutar o balde. Não é que eu tenha escolhido, ou deliberadamente exercitado minha vontade a fim de manter a calma quando todo mundo enlouquece. Como disse o poeta, a vida é sempre uma tripla disputa entre o que você quer, o que o mundo quer de você e o mecanismo invisível que vai dispor de você como quiser. De certa forma, eu invejo todos os meus amigos que deram um foda-se para as conseqüências, mesmo em circunstâncias nada épicas, e viraram o copo de Underberg com Palhinha. Mas sei, ao mesmo tempo, que ainda que eu não queira algum taxímetro moral vai continuar contando as minhas doses, e fará com que eu pare uma antes do bagaço. Aqui jaz Fudílson Noronha, designated driver, que passou no teste do bafômetro da vida.

Noronha, o meditabundo

Eu já
Atendendo ao pedido do Alexandre, resolvi entrar nessa onda confessional e aqui vai o meu "Eu Já".

Eu já comi arroz
Eu já comi feijão
Eu já comi carne
Eu já comi macarrão

Eu já comi alface
Eu já comi berinjela
Eu já comi brócolis
E brigadeiro na panela

Eu já comi doce de caju
Eu já comi goiabada
Eu já comi doce de leite
Eu já comi marmelada

Eu já comi porco
Eu já comi javali
Eu já comi búfalo
Cobra não, nunca comi

Eu já comi caranguejo
Eu já comi siri
Eu já comi ostra
Eu já comi sushi

Eu já comi lagosta
Eu já comi pitu
Eu já comi escargot
Ah, que rima feia eu ia fazer

Eu já comi pão
Como eu gosto de pão
Eu já comi pão
Eu já comi pão

Eu já comi rã
Gosto muito, até
Tanto quanto de coelho
E eu já comi jacaré

Eu já impliquei com garçom
Porque ele não trazia carneiro
E quando trouxe, deixei de lado
Porque sempre fui encrenqueiro

Eu já comi espaguete
À bolonhesa e à marinara
Ao alho e óleo e quatro queijos
Mas gosto mesmo é à carbonara

Eu já comi sashimi
Eu já comi camarão
Mas até hoje desconfio
Que aquele peixe não era salmão

Eu já comi feijão, já disse
Mesmo sem gostar nada
É que eu não gosto de feijão
Mas encaro uma feijoada

Eu já comi pimentão
Eu já comi ervilha
Eu já comi rúcula
Eu já comi lentilha

Eu já comi acarajé
Eu já comi abará
Cocada branca e morena
No Tempero de Dadá

Eu já comi bolinho de estudante
(Que a Dadá, engraçadinha
Resolveu, com muito mau gosto
Chamar de punhetinha)

E como comi sanduíche
De todo tipo: bom e ruim
Mas gosto mesmo é de comida baiana
Só não gosto de xinxim

Já comi comida grega em Paris
Prova de que éramos burros
Adoro pastel velho, de boteco
E sempre gostei de churros

Eu já comi tanta coisa
Inclusive o que não devia
Mas o mais engraçado, mesmo,
É que tudo vai embora no outro dia

Essa é a minha filosofia.

um pouco de nada e nada de muito importante

Eu já tive Porsches, Mercedes e BMWs

Eu já fui do Largo de São Francisco, no Centro, até a praia da Barra a pé em 6 horas e meia

Eu já fiquei quatro horas transando sem parar e sem gozar

Eu já fiquei de ralação, nu, com uma virgem na cama e me recusei a tirar o cabaço dela

Eu já bati meu carro umas 15 vezes

Eu já tive que dizer pra um funcionário da minha empresa que ele fedia e estava incomodando os outros

Eu já demiti uma pessoa (não essa)

Eu já fiz uma empregada chorar só de olhar pra ela

Eu já fiz um macarrão ao sugo com dose tripla de pimenta só pra sacanear um moleque de seis anos que ia comer depois

Eu já fiquei muito feliz de ver que ele foi comendo cada vez mais devagarinho até ficar com os olhos cheios d´água e desistir

Eu já fui apaixonado pela minha melhor amiga, disse pra ela, colocamos uma pedra no assunto e tudo continuou como era antes

Eu já transei com uma mulher que insistia no mais absoluto silêncio durante o sexo

Eu já fui amante de uma mulher que tinha um namoro sério há mais de sete anos e, por mais que ela negue, eu sei que o cara sabia

Eu já cruzei o país de avião pra conhecer uma mulher que encontrei na Internet

Eu já pretendi cruzar o mundo para conhecer outra mulher que encontrei na Internet, mas a puta pipocou na hora

Eu já andei muito de limusine

Eu já salvei a vida de dois atropelados com primeiros-socorros

Eu já me recusei a sair com uma mulher de quem eu estava muito a fim só porque ela insistia em comer meu cu com um consolo

Eu já roubei gorjeta de garçom

Eu já joguei tênis com uma menina valendo eu lamber os pés suados dela depois - eu ganhei e a cretina não deixou, não sabe o que perdeu

Eu já fui gerente de lanchonete por um ano

Eu já fiquei um ano sem comer cadáver - logo depois de ser gerente de lanchonete, enjoado de tanto hamburguer

Eu já transei com colega de trabalho

Eu já saí de casa sem calças, só de cuecas - duas vezes

Eu já caí de um cavalo

Eu já fui presidente do grêmio e editor do jornalzinho da escola

Eu já fiquei devendo mais de R$10.000 no cheque especial e tive que vender o carro pra pagar a conta

Eu já levantei R$200.000 em capital pra montar uma empresa de internet - e torrei tudo

Eu já comunguei - só uma vez

Eu já fiz 9 anos de análise

Eu já briguei com uma onça e quase me dei muito mal

Eu já desmaiei de dor no meio de um ônibus

Eu já desmaiei nos braços do síndico do meu prédio

Eu já fui muito pra Europa de primeira classe

Eu já ganhei dinheiro jogando gamão

Eu já ganhei muito dinheiro escrevendo sátiras pra revista Mad

Eu já fui interrompido pela minha mãe na minha primeira transa

Eu já fingi que era americano

Eu já fingi que era viado

Eu já falei "vou sentir sua falta mas é seu direito" para um adolescente problemático que disse que ia cometer suicídio - ele não cometeu

Eu já fui voluntário pra ser presidente de seção eleitoral

Eu já comandei a Polícia Militar durante uma emergência eleitoral

Eu já lambi os pés de uma leitora desse blog em pleno calçadão de Copacanaba

Eu já tive relógio de US$5.000

Eu já fiz uma professora ter um ataque histérico e chorar - quando eu estava na 5º série

Eu já tentei matar um gato a pauladas -- e não consegui

Eu já tentei matar um cachorro a pauladas -- e também não consegui

Eu já cacei uma rolinha, cozinhei e comi - e continuei com fome

Eu já morei com minha esposa em um quarto na casa da minha mãe

Eu já comprei todas as revistas em quadrinhos que saíam nas bancas

Eu já arranjei um falso contracheque para poder alugar um apartamento

Eu já transei muito sem camisinha

Eu já fiquei sem transar porque nenhuma camisinha entrava em mim

Eu já quase não entrei em muita mulher apertadinha

Eu já atirei muito de arco e flecha

Eu já caiaquei a Lagoa de Marapendi de um lado a outro

Eu já atropelei uma pessoa - que não quis ser levada pro hospital e fugiu quando um PM se aproximou

Eu já fingi ter uma briga séria com um amigo (aos berros, em lugar público) só para ele ser aliciado por uns desafetos meus e descobrir coisas sobre eles - e deu certo

Eu já parei um avião na pista

Eu já fui a única pessoa não vomitando em um barco em que todos passaram mal durante uma tempestade

Eu já roubei livro de biblioteca

Eu já fui retratado por um pintor famoso

Eu já fui até Nova Iorque, tudo pago, só para fazer um serviço que acabou não rolando

Eu já dei um 360 com um jipe - em plena Ataulfo de Paiva

Eu já me hospedei no hotel mais caro do mundo - na época

Eu já visitei 20 países em 3 continentes

Eu já chorei de medo e nervoso em carros - algumas vezes

Eu já saí de ônibus várias vezes por achar que algo de ruim iria acontecer - nas duas vezes em que alguém que eu conhecia ficou no ônibus, ele foi assaltado

Eu já sobrevoei um vulcão de helicóptero

Eu já desprezei garotas gostosas que estavam a fim de mim - só pelo prazer de fazê-las sentir o gostinho

Eu já dormi 23 horas direto - e acordei achando que estava no mesmo dia

Eu já entreguei o mesmo trabalho pra quatro professores da pós

Eu já li a Bíblia de capa a capa duas vezes

Eu já fiquei 24 horas esperando por uma mulher na porta de seu prédio - e a filha da puta não apareceu

Eu já dei cola errado de propósito

Eu já dei entrevistas pra rádio, TV, revistas e jornais

Eu já li Harry Potter and the Order of the Phoenix de uma sentada só

Eu já fui até São Paulo de ônibus mas fingi que fui de avião

Eu já me fingi de mulher na Internet - por dois anos, recebi até pedido de casamento

Eu já fui padrinho de casamento três vezes

Eu já casei

Eu já separei

Eu já fiquei cinco dias procurando meu cachorro em uma favela

Eu já quebrei o polegar da minha avó - que nunca sarou

Eu já comi cavalo, cágado, rã e javali

Eu já marquei C em todas as questões de um vestibular - e passei em 4º lugar

Eu já fiz as unhas - porque uma mulher tinha tesão nisso

Eu já fiz aula de cunnilingus, de chicotes e de velas

Eu já dirigi dois anos sem carteira

Eu já desci de uma montanha na Argentina nos ombros de um guarda-florestal

Eu já vaiei uma velhinha que estava tocando violão em sua festa de aniversário de 100 anos - estava tocando muito mal!

Eu já toquei flauta

Eu já participei do Cabeça Feita, com o Bussunda, na TVE, em 1988, muito antes de ele ir pra Globo

Eu já fui perdoado por uma ofensa que eu jamais imaginaria que poderia ser perdoada

Eu já chutei o balde

LLL - If You Can't Take the Heat, Get Out of the Fucking Kitchen

CATARSE

Sabe quando você fica juntando tristezas, ressentimentos, decepções e desânimo durante muito tempo ? E sem poder – ou querer – falar disso com ninguém, sem querer mostrar os sentimentos, bancar a fraca, a chorona ? E sabe aquela sensação horrorosa, abafada, sufocada, o tempo todo a ponto  de explodir que isso causa ? E sabe quando, de repente, por qualquer motivo - um comercial sentimentalóide na TV, um livrinho bobo, uma lambidinha do seu gato, um abraço do seu amor, uma música quaaase brega que te acerta na veia -  você estoura e chora, chora de soluçar, chora tudo que tinha escondido, por você, por seus amigos,  pelos desconhecidos, pela injustiça do mundo, pelo cazzo alado, chora sem parar e sem escalas por horas, até perceber que já gastou tudo e se continuar chorando vai ser por  inércia, pelo lindo trabalho de renda da aranha no canto da sala destruído pela vassoura ou pela  gratuidade da vida e morte das formigas que você pisou ontem ? Lembra a calma, a leveza, o vazio maravilhoso que vem depois do chororô ? Pois é assim que a cidade está, depois de uma chuva linda que tirou quilos de poeira do ar e das ruas, que deu uma boa lavada no clima de inferno que estava aparentemente instalado pra sempre em cima da gente. E se não fosse um restinho de gripe me irritando, eu não estaria aqui agora escrevendo : estaria lá embaixo, no meio da rua, de braços abertos, tomando chuva na cabeça e feliz da vida como há muito tempo não era.

Cyn City

14.10.04

Jesus falava por parábolas. Já eu prefiro senoidais.
 
Na Igreja do Sagrado Fígado com Fibrose de São Tomé das Letras congregam-se diversos tipos de pedras que aos poucos vão chegando para a missa. Os granitos, os mármores, os basaltos, as pedras-sabão, as pedras-pome vão se distribuíndo pelos bancos do templo. Os grandes matacões sisudos pedem silêncio aos pequeninos cascalhos que riem baixinho dos liquens na velha pedra sentada na primeira fila antes de começar a homilia do Frei Ratapulgo.

– Glória ao Senhor! O sermão de hoje versará sobre a generosidade e a economia de mercado. Exigirá que vocês imaginem uma historinha como se fosse um cartum do Quino. Sabe aquele náufrago barbudo magrelo típico na ilha típica com palmeirinha idem? Pois então, é ele. Imaginem o sujeito no primeiro quadrinho todo desolado em sua ilhota. No segundo quadrinho aparece a proa de um barco enorme, um baleeiro. O barbudo magrelo sorri, radiante, na expectativa do resgate. Depois o capitão desce à ilhota, todo aristocrático de cachimbo e lenço no pescoço. O capitão explica graficamente ao barbudo todo o processo de localização das baleias via GPS, o arpoamento desses grandes cetáceos, o içamento da bichona até o convés, a abertura do ventre pela tripulação e a metodologia do acondicionamento das víceras. Terminada a explicação o capitão cumprimenta efusivamente o náufrago e dá para ele um saquinho transparente com um peixinho dourado. No último quadrinho o barbudo da ilha e o peixinho no saco encaram-se mutuamente enquanto o baleeiro singra em direção ao horizonte.
Visualizaram? Pois muito bem. Agora, abramos todos os hinários em Geraldo Vandré 3:17. Vamos todos caminhando e cantando e seguindo para nossas casas meditar sobre o significado de "Não basta dar o peixe, o importante é ensinar a pescar." Amém?

As pedras começam a sair da igrejinha, umas rolando, outras lentamente se arrastando.

– Ah! Não se esqueçam de deixar metade do dinheiro da carteira de vocês na caixinha de doações na saída. Senão… (Frei Ratapulgo aponta a britadeira dourada sobre o altar) já viram, né? Vocês sabem, o Frei Ratapulgo tem que pagar os agiotas e também comprar o novo DVD da Rita Cadilac pra poder movimentar a economia.

Um paralelepipedozinho impertinente pergunta na saída:
– Mas mãe, baleia é peixe?
A mãe, magmática, dá uma pancada na cabeça do menino que tira até uma lasca.

O Sinistro

13.10.04

No princípio era o Verbo, no meio era a Vírgula, depois era o Sujeito e no fim era a recuperação em português.

Mau Humor

no sábado frio

Não havia beijos entre eles, o que chamava menos atenção. Perto de Henrique, Bruna era pequena e se estendia braços e pernas ao se jogar contra ele no fundo do vagão do metrô. Henrique levantou a mulher pelos braços três vezes. E se divertia em apertá-la contra si e sentir o corpo da mulher. E Bruna tentou empurrá-lo ainda na plataforma, mas não conseguia ficar séria e perdia as forças. Nos braços dele, a mulher esquecia do mundo, e tomou consciência de que estava com os olhos fechados e sorria. E gargalhava. Fileira de dentes brancos que ela raramente mostrava. Henrique a empurrou para fora do vagão e colou a testa contra a porta, despedindo-se em silêncio.

Bruna mudara de expressão quando subiu à superfície. O garoto no lugar do segurança abriu o portão do colégio e não teve como não perguntar se ela e as irmãs aprenderam a ficar emburrada com a mãe.

- Minha mãe não fica brava. Ela toma remédio.

- Você não sabe, sua mãe fica brava muitas vezes ao dia, você apenas não sabe. A brincadeira era que você deve ser irmã das duas outras que passaram correndo aqui. Todas com a mesma cara.

- Minha mãe escolheu um dia ruim para abrir a exposição.

- Estão todos lá ainda.

- Então tem comida.

Bruna se afastou. E o garoto estava certo, quando se perdia em pensamentos Bruna podia ficar com a cara de fome da Renata ou a cara emburrada de Helena.

O mundo tomado pelos rinocerontes

Na rua dos bobos, n.º 0

Meu pai caminha pela casa, após tomar banho, dando gritinhos:
- Agüinha é tão bom. Ai, agüinha é ótimo.

Velho viado.

Depois, após flagrar meu irmão vendo um programa de fofoca na TV, muda o discurso:
- Viva o Leão Lobo, viva o Leão Lobo. O Leão Lobo é o máximo. Viva o Leão Lobo.

É uma bichona incurável, não tem jeito.

-=-=-=-=-
Eu vejo TV no quarto com a patroa. Zapeando, coloco na MTV. Está começando aquele Meninas Veneno (argh!), com a Marina Person (ARGH!). Solto um impropério e mudo de canal:

- E aí, galera? Tá começando mais um Meninas Vene...
- Ah, Person, vai tomar no cu!

A Paula me olha com cara de "que porra foi essa, moleque?". Eu tento me explicar.

- Ah, não gosto dessa tia. Mulher antipática do caralho.
- Falou o Mr. Simpatia.
- Mas eu nunca disse que sou simpático. Muito pelo contrário.
- Então vai tomar no cu!

Impossível discutir com essa guria.

::Utopia Dilucular::

ORAÇÃO AOS QUE NÃO VOLTARAM DO FUNDO DE SI

Por favor sempre às ordens volte sempre. Minha virtude é desatenta vaidade. A saber tudo, não sabia coisa alguma. A ser tudo, não fui coisa alguma. A chama é intransigente e não me deu tempo para arrumar meus pertences. Nem abracei a minha esposa, nem acenei aos filhos. Caminhei por onde não era, para descobri o que faltou fazer. Caminhei por onde não existia, para reparar onde não nasci. Não me pertenço. Queria me ter sem nada buscar. Queria me procurar sem me ameaçar. Escrevo porque não tenho nenhuma prova de que morri e tento me convencer de que ainda há vagas em meu corpo. Quando estou muito cansado, não durmo, porque fico cansado para dormir. Quando não estou tão cansado, descanso sem ritual e sem chinelos a esperar no portão. A insônia é um cansaço do cansaço. Não posso me renunciar, porque não tenho nada a perder. Não posso me desapegar, porque não tenho nada a ganhar. Na única vez em que pesquei, fisguei o anzol em minha perna. Eu me capturei e não me devolvi ao mar. O anzol puxou a carne como se fosse mar e o mar como se fosse carne. E toda pele ao sol é um grito. Minha maior amizade é com que desconheço, o que conheço de mim vira defeito. Não me atormenta ter sido assim, a esmo: por favor sempre às ordens volte sempre. Me atormenta que a imobilidade me tornou rígido e nego duas vezes para afirmar. Sou o filho que minha mulher teve com um estranho. O estranho sou eu. E a luz é suspeita para me devolver o rosto.


ENTRADA PROIBIDA

Eu admirava a escadaria estreita, ladeira somente calçada, beco com saída, jardim dos inços, que me levava a atalhar um quarteirão inteiro e chegar antes de mim nos compromissos. Vi que várias foram fechadas em Petrópolis, bairro de minha infância, em Porto Alegre. Gradeadas, com um portão de ferro e uma placa intimidando a entrada. Quem carrega a chave de uma rua? Quem virou o dono do deserto, do descampado, do terreno baldio, a ponto de bloquear o que é de livre-trânsito? Um chapéu nunca será um guarda-chuva, até porque um chapéu é mais calha do que telhado. Lúgubre como meus olhos, a escadaria entre as ruas Itajaí e Carazinho não vestia terno e gravata, muito menos andava de tênis e roupa esporte. Pela convivência, ficou com a cara de seus mendigos. Sua extensão lembrava alguém deserdado, que perdeu as posses em um jogo de pôquer. Usava um capote maltrapilho a arrastar pelas ervas. Seu capim apresentava a arrogância da grama. Realeza da pobreza, luxúria do abandono. Quantas crianças urinaram nos seus vãos, apressando o musgo? Servia para namorar depois da escola. O primeiro seio que toquei aconteceu nela, o primeiro seio mudou o sentido da minha mão para o resto da vida. Não tinha medo de assalto e de atravessá-la no escuro. Ela não desfrutava de poste de luz para escorrer em seus degraus. Degraus tortos como meus dentes. Exigia conhecimento de caso. Sabia seu andamento de cor: três degraus curtos, dois longos, quatro longos, três curtos, um menor do que todos, vinte curtos, dez longos. Treinava a pichação em suas paredes. Minha letra assobiou pela primeira vez em sua lonjura. Dava um jeito de antiguidade ao bairro, de segredos de família, de obscenidade. Uma escada-caracol dentro do estômago de uma ave. No final dela, há um asilo com cheiro de talco. Não deixava de ser a metáfora de minha vida, o caminho entre a infância e a velhice. Mas a cidade está com medo de envelhecer e fechou sua porta. Isolada de sua memória, envelhece mais rápido.

duplo
.:. Fabricio Carpinejar .:.

12.10.04

Por mais que o tempo passe


Por mais que a vida vaze
e se perca pela linha de fundo,

por mais talvez ou quase
ou mesmo que acabe o mundo;

seja na hora do tudo ou nada,
no meio da rua, no final da calçada,

quando a lua suma, o sol não se levante
e não haja mais a menor possibilidade,

vou te achar dentro do último instante,
vou te buscar com mil anos de idade.

---

um poema postagem telegráfica


Logo mais vou tentar equilibrar
minha insanidade pública
com uma íntima loucura.


morte súbita

RIO SEM METÁFORAS

O que é um rio? Insistem tanto nessa metáfora do rio para quase tudo no mundo. A vida é um rio. O mercado é um rio. O rio serve a muitas comparações. Coitado do rio. Vivi até minha vida adulta à beira de rios. Sou fascinado por eles. Conheço muitos deles. De vista, é bom que se diga. Eu não sei nadar (eu não sei nada!). O meu rio é contemplativo. Vou lhes dizer o que é um rio, sem comparações com nada. O rio é alguma coisa que em si só, sem comparar com nada, é suficientemente magnífico. O rio é uma fonte atraída magneticamente pelo mar. O rio é um banho na terra. O rio era só o que faltava, é a gota d'água ou bilhões delas. O rio é quem deveria recolher outros elementos para si como metáfora porque o rio é muito mais importante do que os termos que se utilizam dele para se descrever. O rio é uma vida. O rio é um mercado. O rio abastece o mar. O rio alimenta o povo que o destrói. O rio embeleza a paisagem que o sufoca. O rio é a casa dos peixes e de latinhas de cervejas deixadas pelos turistas. E entramos em um rio várias vezes, sim senhor, nada nos impede. O rio parado não fica quieto um só minuto. O rio é uma estrada d'água. O rio existe por que é farto e generoso. O rio é uma fonte que não coube em si.

Pró Tensão

VOCÊ SABIA?

Você se considera um cinemaníaco? Pois então teste seus conhecimentos sobre as versões originais de remakes famosos!

Por exemplo, você sabia...

* ... que a primeira versão do Homem Aranha, de 1945, foi feita com Mickey Rooney no papel de Homem Aranha e Judy Garland no de Mary Jane? E com direção de Otto Preminger? Na sequência de 1962, no entanto (dirigida por Sidney Lumet com grande realismo sórdido), Mickey Rooney já estava gordinho, e a cena dele pendurado de cabeça pra baixo, babando e errando pateticamente a boca de Judy Garland, fez com que a crítica Pauline Kael ficasse doente durante uma semana.

* ... que a primeira versão de Matrix (1917) era com Tom Mix? Durante uma das cenas em que Tom atirava dando cambalhotas no ar seu pênis ficou preso no arame, fazendo com que o ator tivesse que ser substituído por um índio navajo mascarado até o final do filme. Atenção para Mary Pickford no papel de Trinity e vários character actors bigodudos no papel de Agente Smith.

* ... que a primeira versão de A Fantástica Fábrica de Chocolates foi filmada em 1903 por Méliès? Charlie Chaplin chegou a escrever na sua autobiografia que cresceu “assustado com os movimentos estranhos e ar diabólico do Sr. Willie Wonka de Méliès”, e seus “ao mesmo tempo terríveis e líricos Oompa Loompas.” Não perca a cena em que Willie Wonka e Charlie Buckett sobem no elevador de vidro até baterem no olho da lua.

* ... que na versão da Atlântida de Cidade de Deus (1946), Wilson Grey dizia: "O senhor me desculpe, mas Dadinho uma carambola - meu nome é José Murtinho Zacarias Filho, ao seu dispor, meu camaradinha"?

* ... que a primeira versão de A Paixão de Cristo é de 1944 e trazia Peter Lorre no papel de Jesus Cristo e Humphrey Bogart no de Caifás? A escolha de Lorre para o papel, considerada infeliz na época (até a Liga de Ateus da California protestou na frente do cinema contra a escolha) fez com que o crítico Richard Deighton escrevesse: “O casting é tão revoltante que você sente que por mais que ele (Lorre) apanhe, não apanhou o suficiente”. Ainda mais bizarra foi a tentativa abortada de Victor Fleming em 1933 de fazer o filme com Shirley Temple no papel de Jesus Cristo (ainda é possível ver, em alguns lugares da internet, imagens raras de Shirley Temple de barbinha e crucificada). Não confundir com A Vida de Jesus Cristo (1962), remake com Frank Sinatra no papel de Jesus cantando "My kind of town, Jerusalem is" pouco antes de ser crucificado e espetado na barriga pelo Dean Martin (Frank diz: Cut that out, will ya, pops?)

(…)

No filme do Frank Sinatra como Jesus Cristo, Dean Martin, segurando um copo de uísque e completamente out of character (considerando-se que ele era São Pedro), pode ser visto olhando para a cruz e dizendo: "Uh, Frank, your wig is all screwed up".

Já no DVD pode-se apreciar cenas como Frank, crucificado, gritando com o diretor para acabar logo a filmagem: "Just shut the fuck up and keep shooting, pimple-face."

(…)


Marco Aurélio - Mas e o Sammy Davis Jr? CADÊ A COTA PARA NEGROS?

(…)

Sammy Davis queria fazer uma dancinha durante a crucificação. O diretor disse que não e Frank, lá na cruz, ficou bravo.

DIRETOR: But it makes no sense. I mean, he´s John. Mr. Sinatra, I don´t see any point...

FRANK: Now listen to me, pizza face. I don´t care if he´s Abe Lincoln or fucking Santa Claus, if the man wants to dance the freaking Candy Man dance, he´ll dance his freaking Candy Man dance, and that´s all there is to it.

DEAN: You show him, Junior.

FRANK: That´s right I´ll show him, Dino baby.

O diretor também reclamou que Dean Martin, que era São Pedro, ficava espetando a barriga de Jesus com uma lança.

DINO: Just trying to keep myself amused here, kiddo. Now relax and go find yourself a big colored rubber ball to play with, will you?

DIRETOR: But you´re Peter...

DINO: That´s right, I´m the merry Peter. And I´m denying Jesus, look.

(e espeta o Frank Sinatra na barriga de novo)

Alexandre Soares Silva

:: Amor Maior ::

I

- Achou bonito? O tamanho assusta, mas não foge disso não. Te vira! O lance é saber usar.
- Achei muito bonito sim! Vou usar para decorar o quarto.

II

Você é muito usado, porém és especial.

III

Essa noite querido, obrigatoriamente você terá que usar pelo menos quatro posições do Kama Sutra pra convencer-me de que me ama.

IV

O que precisa fazer pra entrar nessa vida? Primeiro você esquece de todos os seus valores. Todo mundo sabe sobre eles. Depois não precisa fazer mais nada. Mantenha-se depilada e cheirosa, então você está pronta! Trabalha a semana inteira, até o bar fechar. Pra todo tipo de homem mostra que tu não sabes pensar, mas que sabes trepar muito bem. Em noite fria, pára nas esquinas, e fica grudadinha com suas companheiras de labuta. Quando você sentir aquele vazio, as saudades da família vierem te visitar, e dos antigos amores da vida do passado, você por acaso lembrar, acende uma vela para São Cristal do Chope, e reza para que haja muitos clientes na sua próxima empreitada aos mictórios.

V

Ela tem o hábito de ir à natureza do Passeio Público rebolar com sua saia furada, até ganhar uns trocados, e arranjar alguma coisa pra fumar.

VI

Quem sou eu? Eu sou a dona do casaco feito de saco de lixo, mais glamouroso de que toda essa Treze de Maio tem notícia! Aguardando o caminhão de coleta, e junto dele, os assobios e festinha oriundos dos lixeiros, essa noite meu amor, não importa em quantos eles venham, eu não farei nada pela metade.

:: Inferníssimo :: Jamais duvide! ::

9.10.04

COMO SURGIU VIDA INTELIGENTE NA BLOGOSFERA?

O pouco que se sabe é que, no começo, o ambiente era composto por blogs de diferentes reinos. Os do reino animal eram deseducados, de template sujo e sem revisão gramatical. Os do reino mineral, polidos como diamantes, fluidos como a água e sensíveis como pedra. E os blogs do terceiro reino eram os que mais floresciam, tendo entretanto o conteúdo cognitivo circunscrito à sua definição: vegetal. Daí surgiram três hipóteses para o surgimento da vida inteligente.

1) Origem Extraterrestre: Um belo dia um spam, vindo de Marte, trouxe um vírus que rapidamente propagou-se pela blogosfera. Os blogs do reino animal adquiriram consciência, ergueram-se sobre duas pernas, o galho quebrou e eles caíram no chão. Os do reino mineral e vegetal nem se alteraram – afinal aqueles já se consideravam suficientemente inteligentes e os últimos, em permanente estado vegetativo, nem se tocaram de que tinha novidade no pedaço.

2) Origem Criacionista: E viu o Grande Blogueiro que os três reinos estavam criados, e sua criação era boa. E então disse: "Façamos um post à nossa imagem e semelhança". E fez o primeiro post inteligente, tão inteligente que não gerava comentários. Então o Grande Blogueiro assim disse: "Façamos para este post uma companheira, de modo que ele não fique sozinho e possa procriar". Adicionou então uma figura bem grande ao post, que com isso ficou menos hermético e passou a gerar comentários e mais comentários para povoar o template. Mas logo o Grande Blogueiro cansou-se, mandou um dilúvio e partiu para a Literatura.

3) Hipótese Gaia: Prega que a blogosfera como um todo é um organismo vivo, em permanente evolução e auto-regulamentável. Só que a única regulamentação de impacto até agora é a que retira blogs do ar por conta de comentários de terceiros. O que mostra que, de todas as teorias sobre vida inteligente na blogosfera, esta é a mais fantasiosa.

Ao Mirante, Nelson!, oops!

8.10.04

eme-te-ve conserta essa porra!
respeito.

po
tipo
po
tipo tipo
cara
po po po
rock'n'roll
tipo
tipo tipo tipo
po po po po po po
tipo tipo po
po

atitude!

assim
pans
tipo
cara
rock'n'roll! tipo
po tipo

esse furto é uma roubada

tipo
mas, po. u-huuu!

po, tipo, mas se pans. sacolé?

só.

ninguém consegue terminar uma frase.

po po po da telescOpica

7.10.04

Médico...

Tomei coragem e fui no psicoterapeuta.
Fui achando que é claro ele resolveria todos os meus problemas, me escutaria feito o padre e depois diria amém e eu ainda sairia toda contente pronta para os próximos pecados.
Estava toda ansiosa, sério, achando que ia começar uma nova fase de vida, comprei até roupa nova pra ir no Doutor.
Fiquei duas horas sentada esperando pra ser atendida, achando tudo ótimo porque se estava demorando assim, é porque ele realmente era um médico atencioso.
Chegou minha vez, ele olhou pra mim e fez aquela pergunta detestável:
- O que te tráz aqui?
Falei umas 4 palavras referentes aos meus problemas e ele me disse assim:
- O que você acha de mudar isso?
Achei maravilhoso, é a mesma coisa de ir ao endocrinologista e ele dizer que você tem que emagracer, mas e daí?
Essas coisas que a gente tem que mudar a gente sabe, mas tem algumas coisas que impedem a começar pelo ÂNIMO, e se fui lá é porque estava meio desanimada meio deprê e queria uma solução pra situação.
- Lá pelo TERCEIRO MINUTO da consulta ele me diz, você tem que levantar cedo e caminhar.
ÓTIMO, faz um mês que falo isso pra mim mesma também.
- Então você toma esse rémedio..
Mágico! Achei que ele estivesse anotando os meus sintomas depressivos e ele estava já fazendo a receita do que deveria tomar, sem mesmo fazer exame ou coisa assim?
- Esses remédios vão te fazer bem, mude seu estilo e volte daqui 40 dias.
Fiquei tão frustrada com essa minha primeira visita ao psicoterapeuta que acho que me desanimei mais ainda , imagine só, mas nem o terapeuta quer te ouvir?
Quando estava saindo ele disse assim:
- Não se preocupe viu? Os remédios não são calmantes.
Poxa, que ótimo, fiz um sinal de joinha pra ele, imagine se eu tivesse nele uma esperança de viver melhor? E não é isso que muitos fazem, vão lá justamente porque estão insatisfeitos com si mesmos e querem mudar?
Acho que ele percebeu que era eu e que tudo isso viraria um post.
Só pode, não tem outra explicação. E no fim de tudo a consulta durou 4 minutos e meio e saí tendo nas mãos a cura de todos os meus males. Só quero ver.

casos & acasos

Felicidade Paulistana

Depois de alguns anos morando em Higienópolis, uma amiga, colega de trabalho, me avisa que o tal caminho em direção à Paulista que faço todo dia pela manhã pode ser encurtado em 15 min., simplesmente tomando-se outro trajeto. Sigo a moça e uso a alternativa via Elevado Costa e Silva. Juro, o que fazia em 28 min., faço agora em 13min., por uma simples mudança de rota. Lair Ribeiro diria que fiz mais. Mudei meu paradigma.
Perplexo e bestificado, sorrio satisfeito, dando enorme importância ao fato. Com o meu novo caminho, encontrei o equivalente rural daquele tal prazer barato machadiano, simbolizado na simples liberação das botas apertadas.
Felicidade paulistana é isso.

AMARAR - De volta à capitar

Divagações:

Hoje fui fazer um exame e tirei a tarde de "folga". O exame foi de rotina, mas o "ficar em casa" foi interessante. Faz muito tempo que não faço isso e como estou sempre trabalhando, não sabia por onde começar. Cheguei, liguei a TV (vale a pena ver de novo) e deitei na cama.
Esperei uns 5 min. e liguei para o meu irmão para avisar que estava em casa, esperei mais uns 5 min. e liguei para a loja com aquele papo: "não sei de volto, mais tarde dou uma passada aí".
Liguei para a minha mãe e para o M. Feito isso, não sabia mais o que fazer e fui olhar a grade da TVA para ver se estava passando algo interessante. 16h15 começava "o filho da noiva" (argentino), bom filme. Fui colocar a roupa para lavar na máquina e sentei para ver o filme, levantei e liguei o computador, esperei carregar, li os emails e dei uma zapeada em alguns sites. Lembrei que tinha outro filme para assistir (tinha alugado ontem).
Parei de "ouvir" o da TVA e coloquei o DVD. Sentei na frente da TV e parei o filme para fazer pipoca, parei o filme para jogar fora o saco de pipoca, parei o filme para colocar a roupa no varal e finalmente depois de se arrastar por 2h30 o filme acabou.
Cheguei a seguinte conclusão: quanto mais tempo livre, mais perco tempo! Não sei aproveitar, só sei trabalhar e isso é muito triste.

post-it

Quando as lembranças doem muito eu procuro a parte que deu errado. Lembrando os fracassos e os vexames contidos no mesmo tempo, a saudade dói menos.

sem saída

CUIDADO COM O PISO FLORESCIDO

Primavera é o inverno do asmático. Tenho que me desviar das paineiras. Meus caminhos ficam mais longos. Não compareço a reunião de condomínio do jardim botânico nessa época. Depois me acostumo com o aluguel. Ser puro cansa. Deus cansa. Mesmo quando encontro o que estava perdido não interrompo a busca. Posso encontrar o que não estava perdido, que é bem mais difícil de achar. A verdade nunca é dita de barriga vazia. A mentira nasce da fome. Dou prazos para encerrar as atividades mais prosaicas: parar de fumar, por exemplo. Dar prazo é planejar os vícios. Meus vícios - ao menos - são organizados. Buscar o filho no colégio me envelhece. Mas não faço barulho com a sopa. Telefone de bateria e celular acabaram com a ginástica de cordas dos braços. Levantava o aparelho e esticava o fio preto aos ombros. Ficarei flácido em nome da tecnologia. Destruí minha reputação cedo para não ficar preocupado com ela depois. Minha memória é capim, se parece com a grama, porém cresce mais rápido. Eu não lembro, eu pasto. Não sou vingativo senão não teria tantas vidas perdidas, tantas vidas pela metade. Perguntei a uma amiga: me ensina a te compreender? Ela me respondeu: "não sei te ensinar, aprende e depois me ensina". Estou sempre em vantagem com os outros, em desvantagem comigo. Olho para trás por qualquer assobio. Tudo é pretexto para não olhar para frente. Imprevisivelmente previsível. Invisivelmente visível. Não gosto de ir a cinema sozinho e segurar na mão ossuda da poltrona. Prefiro a mão quente e macia da Ana, para me lembrar do miolo do pão na saída. Só me levarei a sério ao morrer. Queria morrer pequeno, encolhido, para entrar em um violino. O violino faz beliche com as cordas. Na noite, quem é sóbrio sobra. Odeio restos de sabonete. Odeio sabonete de hotel que já é resto e nem foi usado. Ser solteiro é bom, até que termina o papel higiênico e não há ninguém em casa. Emudeço quando estou envergonhado e me abrevio em iniciais. O tímido autêntico não fica vermelho no rosto, mas nas orelhas. Brincadeira de mau gosto é uma piada que alguém ri antes de terminar de contar. A vida não me deixou mais sábio, talvez mais prevenido. O melhor de viver é se repetir. Alimento com alpiste os antepassados no porta-retrato. Porta-retrato é gaiola de gente. Não tiro a poeira do vidro, a poeira exige respeito, água antiga. Eu me espero de banho tomado.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

6.10.04

III

"mamãe, mamãe". do alto das pedras vejo minhas bonecas nadando no mar lá embaixo. elas batem suas perninhas brancas de borracha trazendo ainda nos pés os sapatinhos novos com que as calcei hoje de manhã. não sei por que elas gostam de nadar com aqueles sapatinhos. vão acabar se estragando. mas minhas bonecas não me obedecem. elas nadam com dificuldade. as ondas batem nas pedras e respingam minha roupa. hoje não é um dia apropriado para nadar. mar agitado, muita névoa, nem os pescadores saíram para pescar. mas minhas filhas não me obedecem. oito perninhas sobem e descem. daqui de cima posso vigiá-las, protegê-las. "mamãe, mamãe", eu disse quando abri a caixa gigantesca com quatro bonecas dinamarquesas que minha mãe trouxe para mim de sua última viagem. mamãe nunca mais viajaria. cada boneca era quase do meu tamanho. eu era adulta num corpo de criança, minha mãe me explicou que essas coisas costumam acontecer com determinadas crianças, que eu não devia me importar com isso. como eu vivia triste por ser adulta, ela ficou com pena de mim e me trouxe as bonecas sem que eu tivesse pedido. eu não gosto de bonecas. tenho medo delas, aqueles olhos parados, brilhantes, fixos. não sei como elas conseguem nadar se não enxergam nada. se são de borracha. eu também deveria ser de borracha para que minha mãe pudesse me carregar sempre com ela em suas viagens. mas meu pai disse que nesta última viagem de minha mãe ninguém poderia ir com ela, nem uma boneca. ele acha que eu não sei que mamãe morreu, papai não sabe que sou adulta, eu só contei para minha mãe. um segredo entre nós. as bonecas sabem.

Prosa Caotica

Bad Trip - Bolivia 2004

Meus níveis de ódio estavam meio baixos. Então em julho resolvi viajar para Cochabamba, na Bolívia, uma vez mais.

Numa quinta-feira tomei ônibus para Campo Grande, e não tive nenhum problema além de sentar ao lado de um cara de bafo reprovável que tentou puxar assunto, ao que foi grosseiramente cortado.

Para minha surpresa não tive que esperar muito pra continuar viagem rumo a Corumbá, num ônibus cômodo e sem incidentes além do chato facilmente ignorável que quer conversar com todo mundo.

Era atípico o frio que fazia na região de fronteira... geralmente a temperatura lá fica bem acima dos trinta graus, mas dessa vez estava em torno de quinze. De todo modo, tomei um moto-táxi que me cobrou um preço camarada e cheguei à fronteira. Fiquei espantado com a falta de pilantragem e a velocidade com que saí do guichê de "migración", no lado boliviano, com meu passaporte carimbado.

Quando passei a fronteira era sexta-feira, às duas e meia da tarde. Fui descobrir que um trem tinha saído à uma e meia - os horários haviam mudado desde a última viagem. À noite outro trem ia sair, mas estava com todas passagens vendidas.

Então descobri por que estava tudo lotado... no domingo ia acontecer um plebiscito, e quando há eleição na Bolívia é proibida a circulação de automóveis! Os trens também deixariam de sair, desde sábado. Logo, o último trem que sairia em três dias seria o de este dia (sexta) à noite - e estava lotado.

Fui ver os ônibus que faziam o trajeto, e também não havia lugar, recebi vagas esperanças de que talvez houvesse outro na manhã do dia seguinte.

Então passei o resto da tarde esperando o trem da noite, para ver se sobrava lugar. Numa infantil demonstração de seus pequenos poderes, o maquinista não me deixou subir, apesar de alguns lugares aparentemente vazios e dos protestos de alguns passageiros comovidos com a minha humilhante situação. Mais tarde me arrependi de apelar para os sentimentos do maquinista ao dialogar sobre o horrível fim de semana que passaria sozinho na momentaneamente fria e sempre tediosa cidade fronteiriça de Porto Quijarro, ao invés de insultar a mãe deste pequeno homem - teria o mesmo resultado de não subir no trem, porém uma satisfação pessoal maior. Que remédio, fui procurar um hotel.

Deixei as malas no hotel em torno das oito da noite e fui uma vez mais à saída de ônibus. Um grande grupo de bolivianos esperava um último ônibus para esta noite, e tentei convencer o responsável a deixar-me subir, mesmo que sem assento. Ele cedeu rapidamente e fui buscar as malas no hotel, onde a gentil velhinha não quis cobrar nada.

Imaginei que estivessem abrindo uma exceção para mim no ônibus, vã esperança... outros três homens pagaram cinqüenta bolivianos cada para viajar sem assento também. Ao subir no ônibus, vi que não éramos os únicos... o fundo do ônibus (carinhosamente chamado pelo pessoal da companhia de "camarote") seria dividido entre umas quinze pessoas, além de diversas crianças. Algumas pessoas haviam pago por assentos, e ao subir se deram conta que faltavam os últimos assentos. Como haviam pago noventa bolivianos, queriam pelo menos o ressarcimento do dinheiro... HAHAHA!!! Ressarcimento... HAHAHAHAHA!!!!
Então estava este grande grupo atrás de um ônibus brasileiro, que provavelmente levou escolares no Brasil à aula durante muitos anos até estar muito velho, na década de 80 - quando foi generosamente doado à Bolívia.

A estrada Porto Quijarro-Santa Cruz de la Sierra sempre foi um mistério para mim até este dia. Além de ter esta dita horrenda estrada pela frente, tinha que ir sentado em uns quarenta centímetros quadrados do gigantesco estepe que estava deitado no fundo do ônibus (as áreas mais cômodas haviam sido tomadas pelas mães com crianças).
Para dar um insight mais apropriado, eu era de longe a pessoa mais branca dentro do ônibus. Era provavelmente o único indivíduo com todos os dentes da frente. E o único estrangeiro. Isso tudo somado ao frio que fazia e à poeira que levantava e ao desespero de todos por chegar a Santa Cruz antes que bloqueassem as estradas. Havia ainda o choro intermitente de crianças e a comida gordurosa caindo pelo chão.

Logo ao subir, um cholo se dirigiu a mim:"ahora vas conocer la verdadera Bolívia!"... Muahaha! Andam assistindo muito Tarantino nesses canais piratas...

Ao colocar minha pouca bagagem no lugar acima da cabeça dos passageiros (o resto estava amarrado em cima do ônibus) notei alguns limões ali. A princípio um mistério, logo me dei conta que eles estavam ali para aromatizar o ambiente, engenhoso como num mictório.
Depois de muita chorumela e reclamação dos que queriam assento e dos que reclamavam da qualidade do veículo, partimos. Em poucos minutos, paramos. Furou o pneu. Depois da troca, sentei-me sobre o agora furado e sujo pneu que jazia no fundo do veículo.
A viagem prosseguiu horrorosamente, eu dispunha de muito pouco espaço para sentar e alguns poucos centímetros para pôr os pés, nenhum lugar para encostar as costas, e com amortecedores re-re-recauchutados. Consegui cochilar sobre os joelhos por diversos intervalos de segundos até o amanhecer, quando minha coluna parecia bem esmigalhada. Em pé me sentia mais cômodo para então.

Um indivíduo se dirigia a mim de vez em quando tentando ser gentil, e apesar de eu entender e falar bem o espanhol, ele fazia questão de repetir tudo que dizia lentamente duas ou três vezes.

Depois da parada em um vilarejo para o café da manhã, o ônibus parecia ir bem até o pessoal do fundo escutar um som estranho e alguém gritar para o motorista "PÁRA PÁRA PÁRA!!". O motorista não havia se dado conta, mas uma das rodas do ônibus havia se soltado e estava rolando NA FRENTE DO ÔNIBUS!!

Sim, a roda estava à frente do ônibus. Era apenas um pneu das rodas duplas de trás, mas o outro pneu já havia soltado e estava rolando atrás do ônibus. Isso exigiu uma parada. todos desceram, esperamos pelo conserto, e não demorou mais que duas horas. Depois que empurramos (empurramos inúmeras vezes, não vou citar todas mas subentenda que todos baixam para empurrar a cada três horas), o ônibus seguia feliz e saltitante na estrada de chão mais ou menos batido, quando escutamos outro som nas rodas de trás... o pneu estava soltando de novo.

Mais uma parada e seguimos. Algumas horas de desagradável viagem, e o ônibus tem que dividir a estrada com outro que vem em sentido contrário. Parece simples, mas encalhamos na lama. Descemos para empurrar, o ônibus quase vira em cima de todo mundo, mas com sucesso seguimos.

Na parada seguinte para almoço, pelas cinco da tarde, tomei coragem e comi um frangão frito com batata frita feito na hora - não comia desde que saímos. Comprei umas bolachas para suportar o resto da viagem. Começava a anoitecer, e o motorista começou a acelerar. Isso me lembrou o Mad Max, na hora do crepúsculo, num ônibus velho, numa estrada empoeirada próxima a uma linha férrea... mas no Mad Max os inimigos estavam FORA do veículo. Naquela lata velha a mais de oitenta por hora na descida, cercado de gente que me olhava como o ser estranho que sou, com tanta poeira dentro do ônibus que deixava minha visão borrada, foi uma experiência única. Além de tudo, a não muito funcional porta de trás foi transformada em mictório.

De todo modo, estávamos já relativamente próximos de Santa Cruz. Paramos na estrada depois do anoitecer de sábado porque policiais não queriam deixar veículos seguirem àquela hora, mas depois nos demos conta que era apenas um subterfúgio para a corrupção. Depois de algumas piadas amigáveis sobre eu estar cor de terra ("miren, está todavía más blanco!!"), pagamos propina e seguimos.

Já se haviam passado trinta horas de uma viagem prevista para no máximo quatorze. Entrando em Santa Cruz, pára mais uma vez o ônibus, misteriosamente. Tentamos empurrar e não parte. Depois de tentar nos convencer a ir dali mesmo para a cidade, o motorista revela que acabou o combustível. Alguns fazem uma vaquinha e compram um pouco de diesel. Mesmo com combustível e muito trabalho braçal dos passageiros o ônibus reluta em dar partida, mas insistimos por mais algum tempo até que sai. Chegando na rodoviária fechada dou graças (a quem?) e vou pro hotel logo em frente. Eram mais de três da manhã de domingo.

Consigo um quarto barato com um recepcionista bizarro, digno da Cripta do Terror (Frazetta-style), e ao acender a luz uma barata na parede me dá as boas-vindas.
Fazia muito frio em Santa Cruz, e fui tomar banho para tirar algumas das camadas de poeira do meu corpo... não tinha água quente. Tomei um banho gelado no banheiro coletivo e malcheiroso e deitei apenas com um lençol (estava cansado demais para descer e pedir cobertores).

Um dia ainda vou rir disso.

O dia seguinte não foi de todo horrível. Descansado, esperava poder tomar um ônibus para Cochabamba no mesmo dia, apesar de o transporte só estar oficialmente liberado depois da meia-noite. Assim mesmo, comprei uma passagem para as quatro da tarde - o ônibus só saiu às oito da noite.

Depois disso tudo, o resto da viagem foi fichinha e sequer merece ser citado.
O caminho de volta não teve nenhum ponto especial, além do tratamento nonsense que recebi de mãe e filha no trem de volta e do fato de eu sentar sempre ao lado de alguém que ronca - às vezes tão alto quanto algumas criaturas de Lovecraft.

Ódio