28.11.02

Ele veio, disse oi, sorriu. Percebi que queria algo de mim, afinal, conhecido é pra essas coisas. Dinheiro, caderno, cigarro, passe de ônibus, caneta, cartão telefônico, as costas pra anotar um telefone. Estou aqui, estou aqui pra todo mundo, usem-me, está escrito na minha testa cheia de marcas de expressão.
Expôs a situação: estava "a fim" da Lívia, uma conhecida minha, pele branca, cabelos castanho-escuros, usava óculos e ficava bastante sexy com eles. Mas tinha receio de ir falar com ela. Minha missão era azeitar uma aproximação. Um cupido mau humorado e sem experiência no ramo. Sem saco para o serviço, princpalmente.
Quebra essa, amigão, ele diz. Quebro, quebro, chapinha.
Lívia é bastante acessível. Conversa com todo mundo, sempre simpática, atenciosa, sem ser vulgar ou atirada. Uma graça de menina.
No intervalo das aulas, ela costuma ficar no canto das plantinhas, dos vegetais desnutridos que a escola cultiva. São semi-verdes, estiolados, miseráveis. Parecem ter lepra, pedaços caem sobre nós com freqüência.
Ela está sentada no banco, com um livro na mão.
- Oi, Lívia.
- Oi.
Não há muito o que se falar. Tem um imbecil que quer te comer, seria essa a frase mais gentil?
- Que bom te ver. Senta aí, ela diz.
Sento. Ensaio uma frase, ela me interrompe.
- Nem tente.
Pausa.
Por um momento, eu apenas olho para um galho podre no chão, a mente vazia. Existem frases que reinicializam sua cabeça. Branco, as coisas estão suspensas em algum outro lugar, há ar, há oxigênio, há um pouco de luz, mas nada de palavras.
Ah, sim. Ela sabe.
- Você já sabe do que se trata? Desculpe, me sinto um idiota.
- Você é um idiota muito prestativo e simpático.
- Obrigado, eu digo, coçando a cabeça, ressabiado.
Ela sorri, um sorriso amplo. Seus dentes refletem minha imbecilidade. Refletam algo a mais, algo viscoso e quente como o ódio, mas não tão corrosivo; é, talvez, apenas mais róseo. Mas que pensamento idiota, devo ser mesmo um idiota, é uma constatação válida, eu acho.
- Eu não gosto dele, ela diz. Eu não gosto de ninguém, nem de você, nem de mim.
- Não diga isso. Você é uma pessoa especial.
- Esse tipo de manobra psicológica de quinta não me comove!, ela retruca, muito irônica. A ironia feminina nunca foi tão doce.
Deveria existir alguma lei contra as mulheres serem tão sedutoras assim, impunemente. A gente não agüenta, pô.
Engraçado. Ela disse que não gosta de mim e eu nem percebi.
- Eu gosto de você.
Por outro lado, a desorientação masculina pode ser humilhante.
Ela me olha e sorri. Olha lá minha cara nos dentes dela, olha minha cara de imbecil. Mais: imbecil, decadente, desesperado e patético.
Sorri e levanta.
- Você é uma gracinha de menino. Pena que não percebe as coisas.
- Não percebo o quê?
- Você não percebe, você tem medo.
E vai embora.
Preciso ver mais filmes. O Redford saberia se portar bem melhor que eu.

- Olha, não deu. Ela te odeia pra valer mesmo. Ela de despreza.
- Eu já sabia.
- O quê?
- Cara, você é bem lerdinho, hein?
Isso não tem graça nenhuma.

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