31.1.03

Enquanto esperava para ser atendida na AACD, na segunda-feira, observei as pessoas que estavam por lá, a maioria crianças com seus pais. Vi crianças sorridentes em cadeiras de rodas, crianças em andadores, reaprendendo a andar, vi um toquinho de gente, devia ter uns dois anos, andando ligeirinho aos pulos, com suas muletas, com um jeitinho de sapeca. Pouco antes de virmos embora, resolvi ir até o final do corredor, onde pensei haver uma lanchonete. Ao atravessar a porta, foi como se voltasse no tempo. Estava novamente no saguão, por onde tantas vezes passei e onde fiz minha primeira comunhão. E, em frente a ele, o refeitório, onde nós, crianças semi internas e internas, almoçavámos todas juntas, todos os dias e onde aconteciam as festas de dia da criança e Natal. Pude me ver ali, criança, entre tantas outras crianças, numa mesa comprida, esperando pelo almoço. Lembrei-me das sextas-feiras, quando serviam pirão de peixe. A sexta era o dia de minha revolta. Eu detestava pirão, preferia passar fome a comê-lo. Mas minha revolta era porque nas mesas ao lado, mesas dos adultos, a sexta era o dia da pizza. Os adultos podiam comer pirão se quisessem, mas tinham a pizza como opção, mas a nós crianças, só restava o pirão.

No final do corredor da área escolar existia uma rampa, que dava acesso àquele saguão e refeitório. Quando fui procurá-la vi que a haviam bloqueado na metade, com uma parede. Senti um aperto quando vi aquela parede no meio da rampa que tantas vezes subi. Eu era meio preguiçosa e não gostava de subir rampas, a cadeira ficava pesada e tinha que fazer muita força. Sempre que podia pegava "carona" com algum andante que estivesse subindo. Não gostava de subí-las, mas adorava descê-las. Descia as rampas praticamente sem segurar nas rodas, apenas o suficiente para ir em linha reta. A cadeira descia muito rápido e por várias vezes eu batia na parede em frente ao pé da rampa, porque não conseguia frear a tempo. Eu me divertia fazendo isso.

Tinha um amigo, o Jadir, ele não tinha os braços. Estávamos sempre juntos no período da tarde e nos ajudávamos. Ele me ajudava a subir as rampas e eu o ajudava no que ele precisasse, costumava ajudá-lo na hora do lanche, colocando a comida em sua boca. Quando eu queria ir "lá em baixo", chamava o Jadir. Nem sempre ele queria ir comigo, mas eu acabava convencendo-o. Passeávamos pelo bazar e eu namorava um gatinho verde de plástico com rodinhas. Um dia, Jadir comprou o gatinho e me deu de presente. Fiquei tão feliz! Adorei o gesto dele de me presentear com algo que eu namorava, mas não havia pedido. Éramos companheiros em tudo. Gostávamos de brincar de bola, ele chutava e eu pegava. Juntávamos braços, mãos (meus), pernas e pés (dele) e nos completávamos.

Fui semi interna na AACD por dois anos, chegava às sete da manhã e saía às cinco da tarde. Minha vida acontecia lá. Foi onde aprendi que minha independência dependeria de mim, que deveria fazer todas as coisas que eu achasse que podia e a não ter medo do mundo fora de lá, pois, desde o primeiro dia, sabia que seria um período passageiro, mas essencial ao resto de minha vida.

navegando com a Maré

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