30.1.03

Fui uma péssima irmã. Dessas que ignora a existência dos mais novos, do "bom dia" ao "passa o sal". Era tão egocêntrica e metida a besta que quase não os vi crescer. Depois que saí da casa dos meus pais, passado o susto das primeiras contas que tiveram que ser pagas, me dei conta do quão relapsa e fria eu havia sido com meus irmãos.

Deu uma crise de arrependimento e tentei correr atrás do prejuízo. Convidei minha irmã para um café - ela achou que eu tinha surtado mas aceitou. Tentei aceitar as diferenças com meu irmão do meio e torná-lo menos distante do meu dia a dia e passei a dar mais atenção para o caçula que não desgrudava do meu pé.
De lá pra cá as coisas melhoraram muito. Na medida do possível, tentamos sobreviver aos vínculos familiares e perdoar os deslizes do passado. Mas, com meu irmão mais novo, a coisa às vezes sai do controle. Vira e mexe, brigamos de bater o telefone na cara um do outro, mando ele à merda todas as vezes que estou com o ovo atravessado e perco a paciência sempre que suas atitudes me parecem absurdas.

Sugeri, há alguns meses, que ele abrisse um blog. Eu, com meus planos megalomaníacos, achei que em breve ele poderia, com o blog, tornar um pouco mais concretos seus sonhos de trabalhar com música. Ele gostou da idéia, fez o blog, achou tempo no seu dia corrido para escrever, responder e-mails, conhecer as pessoas, visitar outros blogs e tudo mais. Foram dois ou três meses, se muito. No início ele queria tirar férias para se dedicar ao blog mas a agenda de trabalho não permitiu. Ele, que já andava estressado, piorou, mas continuou driblando a falta de tempo e cuidando de todos os compromissos que assumiu.

O mês de dezembro foi um desastre, bateram no seu carro quatro vezes. Na última, o motorista se aproveitou das circunstâncias e entrou com um processo para ser ressarcido pelos danos que, segundo ele, meu irmão causou. Estresse e injustiça aliados à sua falta de atenção, mas não vou bancar a irmã chata. Não hoje.
O fato é que, na última sexta feira, meu irmão conseguiu tirar alguns dias de férias. Chegou aqui em casa no fim do dia com uma expressão cansada, a voz meio rouca. Estava com uma boa grana na conta, suficiente para quitar os prejuízos do mês anterior e dar entrada num carro meia-boca que facilitasse o seu dia. Foi até o computador: correspondência atrasada e caixa postal cheia, velhos e novos comentários, velhas e novas amizades virtuais; há quase uma semana não atualizava seu blog.

Eu achei que ele tinha desistido, cheguei até a criticá-lo:
- Não vai mais postar nada não, é?
- Não.
- Humm...
- Eu não tenho mais vida. Nem durmo direito. Passo mais tempo pensando neste blog do que em qualquer outra coisa. Eu gostei de abrir o blog. Conheci muita gente legal por conta dele. Não vou parar de postar, mas não vou ficar escravo disso. Aliás, vou tirar a parte de comentários e toda aquela parafernália que me faz procurar um computador o tempo todo só para dar manutenção ao blog. Eu tô esgotado. Não vou fechar o blog, mas vou fazê-lo pra mim e não para outras pessoas.

Acho que foi a primeira vez que ouvi meu irmão com seriedade. Ele tinha razão, a mais pura razão. Ele voltou para o micro, ficou lá um tempo, escreveu por quase uma hora e em seguida apareceu na sala com cara de criança quando faz traquinagem.
- Que foi garoto? Que cara é essa?
- Vou pra Salvador.
- O quê?
- Vou pra Salvador. Embarco amanhã cedo de Cumbica, volto de ônibus, fico um pouco em algumas cidades do sul da Bahia, depois Rio de Janeiro e volto para São Paulo.
- E grana? E o carro? E o processo?
- Não me importo de ficar mais um tempo sem carro, não é o fim do mundo. O cara que me bateu está errado. Se ele quis entrar com um processo, isto é problema dele, não meu. Mesmo que eu tenha que pagar pelo que eu não fiz, esse é um problema menor e que eu só vou me preocupar quando tiver que pensar nisso. Eu sempre quis conhecer o nordeste, sempre quis fazer uma viagem dessas: sozinho, sem saber direito para onde ir, como vai ser, quem eu vou conhecer... essas coisas que você vivia fazendo, muito mais nova do que eu.

Levei ele no aeroporto no dia seguinte, orgulhosa pra caralho. Falei com ele por telefone dois dias depois. Era outro cara. Um cara confiante, sorridente, cheio de coragem e com a voz embriagada de uma felicidade que me soou familiar e distante. Deu um aperto no peito, deu saudade de mim mesma e de tantas outras viagens e pessoas que estacionaram nas lembranças da minha vida. Passou... dei com a minha cara cheia de lágrimas no espelho do banheiro e vi que passou. Foi bom ter passado... Não me sinto mais como a irmã mais velha, não me sinto mais como a irmã ausente, não os sinto mais como desconhecidos. Agora sou só a amiga e, por coincidência, a irmã.

sorvido do AMARULA COM SUCRILHOS

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