17.3.03

Entrei correndo no metrô, asfixiada por uma quantidade absurda de trabalho. Um lugarzinho vago - opa! é meu! E me sentei.

Olhei para o lado, e havia um rapaz, sentado de costas para mim. Vinte e pouquíssimos anos, alto, magro, com um walkman e uma camiseta azul - mas só prestei atenção nele cerca de quinze minutos depois. Nos quinze anteriores, meus olhos viram AQUILO. Impossível não ver.
O tamanho, o formato, a cor, a posição das orelhas do cara - demorei um tempo para compreender. Sempre achei que uma das minhas orelhas é horrenda: é de abano. Mas, amiguinhos, perto das orelhas do cara, a ligeira curvatura da minha orelhinha é perfeição estética.
Depois de uns minutos tentando rebootar o cérebro para entender o fenômeno, procurei analisar com calma. Mas isso são orelhas ou são próteses???

Me lembrei das aulas de desenho, em que o professor ensinava uma técnica de proporção para o desenho do rosto, e estudando o cara, percebi que o tamanho das orelhas correspondia a 1/3 do tamanho da cabeça...
Orelhas bronzeadas, enormes, redondinhas na parte superior, enfiadas perpendicularmente nas laterais da cabeça, cujos cabelos encrespados foram domados pela máquina dois, no cocuruto uma calva incipiente, como se fosse um quipá. Quantos apelidos esse cara já levou na vida?

Por mais que eu quisesse, não adiantava tentar desviar o pensamento para outras regiões da anatomia do cara, porque ELAS dominavam o quadro: foram furadas um dia, mas ele estava sem os brincos. Tá, mas o pescoço dele é elegante, penso, para logo depois reparar que ELAS são cobertas por uma penugem aloirada e que são ricamente vascularizadas. Dava para ver os vasos arroxeados e bem nutridos irrigando as dumbaças. A orelha esquerda tem uma pinta atrás, penso, e essa pinta ele nunca vai poder encarar de frente, a não ser que...

Tentei me controlar, mas todos os demônios do inferno fizeram aflorar o pior que há em mim. Continuei: ... a não ser que cortem as orelhas dele!!! Como é que ele consegue conviver com essas orelhas, meu Deus? Será que se ele conseguir abaná-las, sairá voando por aí? E o que Dumbo faz aqui no metrô, ao lado de todos os pobres mortais que não voam?

Eu estava me odiando. Detesto ter esse tipo de pensamento. Não costumo reparar desssa forma nas pessoas. Estava me sentindo mal, queria pensar no trabalho, mas ELAS se recusavam a sair do meu campo de visão. Imaginei se ele escuta melhor que eu. Tentei visualizar o formato do feto invertido, que os chineses dizem que nossa orelha é, com terminações de todos os meridianos por ali. Não consegui ver feto nenhum. Pareciam mais duas batatas.

Fiquei curiosa para estudar o cara de perfil, de frente, olhar mais, perceber mais, entender melhor, mas não houve jeito. As orelhas se levantaram, pendendo de dentro delas os fiozinhos pretos do walkman. Ele, sempre de costas, saltou na estação. E então finalmente reparei que as orelhas tinham dono.

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