23.5.03

Ladainha da resignação

Tudo é absolutamente frágil. Amor, amizade, emprego, família. Tudo é mantido em uma harmonia mínima graças à resignação. A resignação é um botãozinho difícil de ser encontrado no corpo humano. Porque fica nas costas, naquele lugar ínfimo entre as omoplatas que a gente tenta coçar, mas não consegue. A resignação é sábia. E é o que torna possível, em determinado momento, conciliar o amor, a amizade, a família e o emprego.

O problema todo é que, durante o sono, a gente pode, sem querer, resvalar no botãozinho da resignação, desligando-o. A gente nem se dá conta. Vai dormir, sonha com pássaros e gira-sóis cor-de-rosa em chifres de unicórnios alados e quando acorda, já à primeira fala com a mulher amada, com o amigo querido, com o chefe ou com o irmão, descobre que algo não está certo. O oi da namorada o atinge de uma maneira incômoda; o bom-dia do amigo soa como uma maldição; a ordem do chefe torna-se pesada e impossível; e o pedido de desculpas do irmão surge como um insulto. Viver torna-se muito mais difícil.

Não comigo. Durante os últimos treze anos vivi com o botãozinho da resignação desligado. Na verdade, eu nem sabia o que era resignação. Foi há pouco tempo que olhei no Dicionário Ilustrado do Dr. Drus e descobri o significado da dita e a sua localização exata no corpo humano. Há uns seis meses, creio. Antes disso, eu era extremamente vulnerável à palavra alheia, seja ela da namorada, do amigo, do chefe ou do irmão. Posso dizer que a descoberta da resignação foi um milagre.

Como também foi um milagre eu ter vivido tanto tempo dando demasiada importância às coisas pequenas da vida, ditas e vividas por aqueles que me cercam. Não foi, porém, um milagre colorido de filme que passa na Sexta-feira Santa. Pelo contrário, foi um milagre em preto-e-branco, de carnes pendentes e com um cheiro incrível de atum — que eu odeio. Tanto é assim que nos últimos treze anos eu quis muito morrer. Afinal, pobre de mim, não podia ouvir um eu-te-amo, um eu-o-admiro, um você-é-um-gênio ou um vem-cá-me-dá-um-abraço sem achar que estava escutando eu-te-desprezo, você-é-a-pior-pessoa-do-mundo, seu-idiota, calhorda.

Os pensamentos a respeito da morte, contudo, não eram levados a cabo. Nunca o foram. Eu até digo para as pessoas que um dia tentei me matar, mas é um exagero. Afinal de contas, ficar catatônico por algumas horas, pensando que não vale a pena comer o pudim de leite na geladeira não é exatamente uma tentativa de suicídio. É mais força de vontade de alguém que, em determinado momento, olhou para baixo e achou que por causa da barriga protuberante seria incapaz de apertar o botãozinho da resignação.

Para se entender como é absolutamente indispensável que se saiba tocar nesta parte desprezada do corpo que possibilita a convivência em sociedade, basta dizer que eu acordava pela manhã, olhava o sol e pensava: “Bom dia para morrer”. Não era um pensamento rancoroso, veja bem. Nem motivo havia, na verdade. Era só um desejo motivado pela incapacidade de se resignar. Aí eu tomava um banho e pensava que o cano do chuveiro bem que poderia agüentar o peso de uma corda e o meu pescoço. Sentava no box e com a bunda tapava o ralo para ver o banheiro inundar e me afogar. Saía do banho incólume e ia trabalhar, sem olhar para os semáforos. Preferia olhar para o céu, em busca de um meteorito que atingisse em cheio minha cabeça. Em chegando ao trabalho, ileso, começava a fuçar nos fios do computador, na esperança de um choque. Ficava mirando a porta o tempo todo, na expectativa de que entrasse um colega louco armado de uma metralhadora, como no noticiário da noite anterior. No almoço, agradecia aos céus pela comida que eu queria estragada e letal. Ia para casa, sem olhar os semáforos, e passava em frente a uma loja de armas. Cogitava entrar, mas não entrava, e no resto do trajeto, sem olhar os semáforos, eu pensava na sensação de ter uma bala perfurando o crânio. O que pensa o suicida no átimo que antecede a morte? Ou melhor, o que pensa ele no último resquício de vida? Eram respostas que eu queria ter, porque meu botãozinho da resignação estava desligado. Chegando em casa, ia para a varanda do décimo quinto andar, olhar a queda que eu não tinha coragem de cair. Invariavelmente cansado, dormia e imaginava que um louco de filme americano bem que poderia surgir no quarto com um machado e decepar minha cabeça.

E foi assim por longos treze anos. Só Deus sabe quantas mortes eu morri, não morrendo.

Eis que um dia, por acidente, meu botãozinho foi acionado. E a resignação passou a fazer parte do meu dia-a-dia. As palavras não tinham mais peso e mesmo aquelas que eram de fato proferidas com peso a mim chegavam como plumas. Eu respondi ao abandono da namorada com um corte de cabelo e um cento de cartões profissionais encomendados na gráfica da esquina; ao desprezo do amigo respondi com um bombom de chocolate e dois banhos no meio da tarde; às broncas e ameaças do chefe respondi com uma piada sobre portugueses e uma receita de miojo frito; e ao insulto sem sentido do irmão respondi com ciranda-cirandinha e um ovo de papagaio. Nada para mim fazia sentido neste mundo de palavras inexatas.

E quando digo nada quero dizer isso: nada. Desde então. Era para eu ter tido uma recaída, claro. E para meu botãozinho da resignação ser desligado de vez em quando. Era para voltar a pensar na morte rápida e auto-infringida. Nada disso aconteceu, porém. E a explicação é muito simples: durante treze anos eu morri mortes dispensáveis, por motivos absolutamente tolos. Estou em crédito com o Divino, pois.

E em sofrendo agruras cotidianas hoje (a namorada, o amigo, o chefe e o irmão) me dei conta disso: a resignação é que salva a minha vida. E que torna possível o sorriso permanente que estampo no rosto dia após dia. E que torna fácil o sono de todas as noites. E que permite que o arroz-com-feijão desça sem problemas estômago abaixo. Sou, pois, um Sábio.

Ser Sábio, claro, tem suas desvantagens. Ou melhor, saber-se Sábio é que as tem. Porque Deus não permite que homens sábios andem pela terra, disputando a sapiência com Ele, o Grande Resignado. Logo, em pouco tempo os sonhos de morte do passado haverão de se tornar realidade, pelas mãos dEle. Por isso, olho para os semáforos duas ou três vezes antes de atravessar a rua, na faixa, claro; ando protegido por uma grossa placa de chumbo contra meteoritos assassinos; tranco o quarto com cinco voltas na fechadura para impedir que um maluco me decepe a cabeça; e trabalho com colete à prova de balas, porque temo os colegas não-resignados e não-sábios. Deus, contudo, me espreita.

continua em O Polzonoff

Nenhum comentário: