Última recordação...
Segunda-feira passada meu apto foi invadido por um estranho. Deixou marcas suas no tapete da cozinha, em minhas roupas, livros, no parepeito da janela. Levou embora alguns de meus pertences e mais um pouquinho de minha fé no mundo. Não deixou bilhete, recado, aviso, comunicado. Deixou apenas um sentimento de estranheza profunda. Hoje sentei em minha cama e fiquei alguns instantes olhando minhas paredes com os longos trechos transcritos a lápis, admirando as figuras em bricolage, velando à biblioteca - felizmente não carregou nenhum livro, não era dado às vaidades intelectuais, era um homem prático. Queria ser os seus olhos naqueles momentos de euforia atávica ou adestrada frieza quando o pobre diabo invadia com sua estranheza a minha, e usurpava de mim o que nunca foi meu e nem será de ninguém. Algo terá tirado sua atenção de seus objetivos por algum momento? Saberia ler? Alguma frase em minhas paredes ficou trancafiada no seu mundo particular? Queria que ele realmente pudesse ver com os meus olhos o que somente eu poderia ver nos seus. Queria, realmente eu queria, que ele tivesse deixado todos os pertences que levou em troca de um livro de minha biblioteca, em troca de uma fotografia de Drummond, ou um dos cds do Miles. Mas não foi o que ele viu de valor no apto. Levou consigo apenas a carcaça. Alegra-me mais a idéia de um larápio que abandona o furto para ler um par de contos de escolha sua na biblioteca da vítima, do que a realidade de caixeiros-viajantes como este. Mas o mundo é imperfeito e é tal como é, do tamanho de suas imperfeições. Tenho fé no homem. Acredito na fala do personagem de Kevin Spacey no filme K-PAX quando argumenta que qualquer um no universo sabe a diferença entre o "certo" e o "errado". Acredito que o sujeito que invadiu minha casa, como hábil matemático, teve tempo para ponderar os riscos que corria e as escolhas que tinha por opção. Acredito que escolheu mal e que a sua situação o coloca ainda mais distante de uma possível redenção diante de si próprio. Antes de tudo mais, diante de si próprio. Hoje tenho as janelas de minha casa indefinidamente trancadas. Tive que reforçar batentes, acercar barras de aço retorcidas à sua volta, outras travas foram adicionadas à porta e minha casa ficou mais escura e meu coração mais escuro. Ele conhece o meu rosto por meus retratos e eu possivelmente jamais saberei o seu. Talvez seja melhor assim. Um dia vai passar por mim, no mesmo lado da calçada em que eu estiver, vai me ver de longe, mas ao seu aproximar não vai me olhar nos olhos. Quem teria coragem de olhar nos olhos de um cego para o qual tenha feito uma grande maldade? Eu vou guardar de você apenas uma lembrança, as outras, consideravelmente mais tristes, vão expurgadas nesse texto, e a lembrança será a seguinte - um menino correndo descalço num terreno baldio o mais rápido que consegue para pegar antes dos demais a pipa que caiu do céu...
capítulo de recordação no Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo
12.5.03
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