Reciclagem cega
O mineiro Sebastião Francisco Pires, 51 anos, vagueia revirando lixos e fuçando containers pelas ruas de São Paulo. Procura latas ou pedaços de ferro para vender: serviço autônomo, porém tático em sobejo para a cidade. Bastião induz a reciclagem em um município que pena para desenvolver um sistema viável de reaproveitamento dos dejetos produzidos pela população. O curioso é que este andarilho não tem a mínima dimensão cognitiva do trabalho que desenvolve. "Utilidade pública? Eu quero é comer", me disse enquanto separava com a unha negra - e devolvia para o saco - uma tira de borracha de um rodo velho. "Só junto metal e alumínio. O resto é dos lixeiros". Bastião veste este boné com os dizeres "Lavagem do Bonfim" e usa uma calça rasgada, preta. Tudo low profile. O look é complementado com sapatos de couro bege, uma mochila vermelha e uma pulseirinha amarela de causar frisson no mundo descolê. Tudo isso é fruto de uma renda diária "que não chega a um real". Nossa conversa foi inicialmente confusa. O excluído não sabia o que era Internet e teve dificuldade para lembrar o que seria um computador. Para resolver a questão, disse que nosso bate-papo seria publicado em uma espécie de jornal. Numa boa, acho que ele não entendeu nada. Recusou uma coca-cola e mostrou espanto quando ofereci uma bolacha. Estava desconfiado. Bastião nasceu em São João Evangelista, em Minas Gerais, e veio para São Paulo em 1974. Não sabe ler e articula muito mal a fala. Abandonou a escola logo na 2ª série. Diz que deixou a família e os amigos para achar oportunidades na metrópole. "E o começo foi fácil, amigo", lembra. Trabalhou como pedreiro em empresas de renome, como Mendes Júnior, e juntou um bom dinheiro. "Comprei tudo em equipamentos eletrônicos e fui vender na rua. Esticava um saco plástico na calçada e oferecia. E dava grana, viu?". Há quatro anos, um fiscal da prefeitura levou todos os rádios e afins que Bastião comercializava em frente ao prédio da Câmara Municipal. "Foram mais de 4 mil reais". Foi aí que ele começou a morar na rua. "Sempre variando de lugar". Ontem, a cama foi o concreto de uma marquise na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. "Albergue me tira a privacidade", disse o mineiro, fazendo humor sem saber. Bastião disse que sempre escolhe "becos novos" para fugir dos assaltantes. "Não posso ter nada: me roubam". Mesmo assim - indo contra uma certa regra entre moradores de rua - não anda armado com estiletes ou pequenas facas. "As minhas orações me protegem: afastam os maus elementos e as doenças. Acredita que nunca precisei de médicos nem de remédios?", me perguntou. Pensei: "Porra, e todo mundo morrendo de medo da Sars".
||| Agência de Notícias do Circo do Absurdo |||
1.5.03
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