17.7.03

Porque eu não sabia o quanto doía, embora soubesse da dor. Porque seus gritos me paralisavam de medo. Porque eu nunca aprendi a perder. Porque eu nunca soube ganhar. Porque você me deu a chave de casa quando ainda era muito cedo pra isso com o aviso "faça o que quiser, vá pra onde quiser, mas todo dia, às seis da manhã, eu tiro você da cama pra escola". Porque você comprava biscoitinhos recheados de chocolate e dizia "Bi, vem cá, comprei os Olímpicos". Porque você chamava a despensa da casa de "special reserve". Porque você cantava a música do baile na gafieira pra mim, e a dos sapatos de Iracema e aquela em italiano, sobre o comunismo e a liberdade. Porque você me ensinou a amar música cubana. Porque eu não passo 24 horas sem pensar em você. Porque eu amava o Alexandre e quando você o conheceu, você o amou também. E aí, meu amor por ele aumentou. Porque você me levou para viajar pra tudo quanto foi lado, e viajar com você era andar com o melhor guia turístico do mundo. Porque uma vez, em Lisboa, você me disse : "Civilização, é isso aqui, digam o que disserem. O mundo é melhor em Portugal, Bi". Porque até os motoristas de táxi da Alfama te conheciam. Porque você sabia dos gregos, dos romanos, dos fenícios, dos visigodos. Porque as suas malhas tinham um cheiro bom. Porque ninguém podia usar seus chinelos ou mexer no seu umbigo. Porque no dia da formatura do Pedrão, ele ali no palco, você me disse "seu irmão foi a melhor coisa que eu já fiz na vida" e eu fiquei triste e feliz ao mesmo tempo. Porque agora, seu globo terrestre é meu. Porque você botou a Setembrina nas nossas vidas, e agora eu tenho pesadelos horríveis com ela, e acordo chorando. Porque sua mãe tinha olhos azuis e me chamava de "cariño". Porque você botou a Lola na minha vida, e isso não tem preço. Porque eu queria um pai, não um amigo. Porque nós não fomos nem amigos. Porque você andava a cavalo como um Huno, e eu tinha tanto orgulho que achava que ia desmaiar. Porque eu nunca vi mãos tão belas quanto as suas. Porque você é meu pai, e ninguém tira isso de mim. Porque as palavras duras nunca paravam na sua garganta e sempre paravam na minha. Porque você se deitava no chão do meu quarto, pegava na minha mão e cantava "se essa rua fosse minha" com a voz mais doce do mundo. Porque você, mais que ninguém, me ensinou que ostentar tudo, de carro novo a conhecimento, é a coisa mais execrável que se pode fazer. Porque o Alexandre vive dizendo "se o Nelsinho estivesse aqui...". Porque você me ensinou a andar de bicicleta. Porque você sabia como me magoar. Porque você cantava no banho. Porque seu pai foi a pessoa que mais me amou nessa vida. Porque você nadava tão bem, pulava tão lindo do trampolim. Porque eu subia nos móveis e gritava "madeeeeeeeiraaaaa!"e você corria pra me apanhar. Porque você me mandou pro Rio, pra ver o Bolshoi no Municipal. Porque você nos contava as historinhas do Bingo. Não, Pingo. Bingo. Pingo. Ai, pai, decide, como é o nome do indiozinho? Porque você passava o tempo todo fazendo média pra arquibancada, e só a gente sacava. E agora, pagamos o preço pelo seu teatro... e isso não é justo. Porque seus carros tinham nomes engraçados como "Roberta Close", "Juvenal Alfafa", "Viatura". Porque a vida sem você é tão ruim, que muitos dias eu não consigo nem sair da cama. Porque você nunca disse que eu era bonita. Porque você dissecava peixes, asas de galinha, galinhas inteiras, até uma cobra que você atropelou, pra explicar como os bichos funcionavam e uma vez na feira, (lembra?), a mamãe comprou um filhote de tubarão e foi a maior aula da minha vida. Porque você dava aulas de astronomia também, com lanternas e laranjas, e depois nos levava ao Planetário. Porque eu nunca fui capaz de ser o que você queria que eu fosse. Porque você amava meus cabelos. Porque você me ensinava o que havia de mais invocado em genética, e eu adorava. Porque você tinha enciclopédias genias, e agora elas estão aqui. Porque eu tenho uma foto sua com uma flor na boca. Porque na primeira vez que eu me vesti de "mulherzinha", você tirou os tamancos plataforma dos meus pés no meio da rua, e jogou num tereno baldio, e eu não me lembro de humilhação maior. Porque 12 horas antes de morrer, você estava preocupado com a minha gripe. Porque eu nunca amei tanto alguém. Porque eu nunca odiei tanto alguém. Porque você fazia "ovos no inferno" e tostex, e nós ríamos na cozinha. Porque você se cercava de gente de décima categoria, pai, sempre. Porque você adorava as cantinas do Bexiga, e comia fussili e perna de cabrito. Porque você tinha a gargalhada mais gostosa e mais rara, e o que eu mais desejava na vida era fazer você rir. Porque hoje é seu aniversário e você não está aqui. Mas eu estou. Então, você está aqui, em mim.

Drops da Fal, no aniversário do pai dela.

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