7.7.03

Quem diria que eu estaria aqui de novo, bem na sua frente, cara a cara, mamãe, falando com você, finalmente com coragem de dizer tudo que me passa pela cabeça, dizendo coisas que eu jamais imaginei que pudesse dizer um dia para a minha própria mãe, sim, você, coisas que eu sempre tive medo que pudessem magoá-la pois sempre soube que você era muito sensível e chorava ou gritava à mera menção de meus problemas, fossem pessoais ou relacionados a você, e, sim, mamãe, eu me calava porque tinha medo, medo da sua reação, de você não me compreender, de interpretar tudo errado, como sempre costumava fazer quando eu era criança e tinha meus próprios desejos, bem diferentes dos seus, já que eu não fazia mais parte de você, minha carne tinha se libertado dos ganchos, você não percebeu, mamãe? Minha carne já não era sua, meu sangue já não era seu, meu corpo a abandonou com o alívio que só a dor e o prazer da separação podem trazer, meu corpo agora era meu e ele começou a gerar seus próprios pensamentos, essa coisa incomensurável e ao mesmo tempo diminuta que sou eu, por acaso sua filha. Mas você parecia que nunca percebia isso, ou não queria ver, mamãe, meus próprios pensamentos, e a mim, os meus desejos. Mas eu mudei, mãe, hoje tenho coragem de lhe falar tudo isso, não está vendo? Hoje, agora, eu estou aqui, na sua frente, sem você ter me chamado, e você vai saber de tudo. Não, não adianta fazer essa cara, não adianta fechar os olhos e fingir que não me ouve, eu sei que você pode me ouvir, você sempre tem ouvido para tudo, para todo mundo, para os meus irmãos, para os parentes, vizinhos e os poucos amigos que frequentavam a nossa casa. A nossa casa, aquele lugar arrumadinho e limpo onde eu mal podia colocar os pés onde quer que fosse, aquela cozinha, onde não me era permitido abrir as panelas para ver o que teríamos no almoço ou no jantar, aquela casa em que eu só podia deitar no meu quarto, na cama que não fazia, sobre lençóis que eu não escolhia, onde eu dormia no horário que você estabelecia, sempre antes dos melhores programas que passavam na tevê, antes que eu pudesse ouvir qualquer conversa interessante das visitas, eu ia dormir morrendo de curiosidade, mamãe, porque crianças são curiosas, eu ia dormir mas encostava o ouvido na parede e ouvia tudo, sabia? Eu ouvia o que você fazia com papai do outro lado da parede também, e nunca pude entender direito por que quando vocês se calavam e as luzes se apagavam eu continuava ouvindo e pegava no sono, hoje acho que tudo aquilo era um sonho, um sonho meu no qual vocês não me incluíam porque eu era o outro lado da parede, algo em que se pendura as fotos dos meus dois anos, dos meus cinco anos, de sua filhinha no colégio, na faculdade. Minha parede continua lá, mamãe? Está espantada com tudo isso que estou lhe dizendo? Não, não são ressentimentos, estou só me abrindo, pela primeira vez, com você, agora sou uma mulher adulta, eu envelheci, mamãe, e há momentos em que acho que você é mais jovem do que eu, estranho, não é? Você ficou tão bonita depois que envelheceu. Será que vou ficar assim também? Suas mãos são tão macias, você sempre cuidou muito bem delas, não é mesmo? Na verdade elas sempre foram muito bonitas, embora eu sempre as tivesse visto de longe, você nunca me tocava muito, não é, mamãe? Então eu as admirava de longe, quando você penteava os cabelos, arrumava os talheres sobre a mesa, adoçava o café, segurava o telefone, pintava os lábios, puxava as meias finas até as coxas e as alisava para esticar os fios, que mãos lindas, lindas se comparadas às minhas, não acha? Veja só, olhe bem para elas, está vendo? Magras, muito magras. Você emagreceu tanto, agora que estou reparando. Tem se alimentado mal? Ainda anda obcecada com suas dietas radicais? Você me parece em forma, como sempre quis ficar, eu, ao contrário, estou sempre como não quis ficar, fora de forma completamente. Se alguém nos visse juntas, diria que eu sou sua mãe e você, minha filha. Engraçado isso. Não acha? Está rindo de mim? É, você sempre riu de mim, a sua filha doidinha, a inconsequente da família, a caçula, a última a ter nascido porque você se descontrolou. É, é mesmo. Se arrependeu de eu ter nascido, não é? Eu sei que sim. Vamos, confesse, faça como eu, seja sincera pelo menos uma vez na vida, o que temos a perder? Somos mãe e filha afinal. Já não está na hora de jogarmos limpo? Eu vim aqui pra isso, pra colocar tudo em pratos limpos, tão limpos quanto os seus. Mamãe, somos duas velhas agora. Pense nisso. Sejamos como velhas camaradas, hein? Não é melhor? Velhas companheiras de luta, velhas colegas de escola, velhas amigas. Eu sou sua amiga, me reconheça. Passado é passado. Vim aqui pra lhe dizer isso. Pra lhe dizer muitas outras coisas mais, mas infelizmente estou sem tempo, tenho outros compromissos, e você também deve estar atrasada. Ah, mamãe, sempre tão pontual, sempre chegando na hora marcada, sem tempo pra mais nada. Não sou eu quem vai mais uma vez atrasá-la, não é? Quer que eu feche a gaveta pra você? Você está tão bonita, e vai ficar mais ainda com o vestido lindo que comprei para você receber seus convidados amanhã para um último beijo. Até manhã, mamãe.


prosa caótica

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