Confissões de um brontossauro
O destino parece que me adestrou para esse passo extravagante, de tartaruga ou brontossauro, imobilizando-me por sete anos numa cama, doente, desde o nascimento. Eu passava semanas, meses com febre, delirando. Era tanto tempo prostrado, arfando, que quando emergia das sombras e me sentava na beirada da cama, tinha de reaprender a andar. Achava duvidoso que minhas pernas obedecessem ao comando do cérebro e ficava ali, ensaiando mentalmente, incrédulo, até que elas começassem a se mover por si mesmas, restaurando minha confiança na realidade do mundo físico.
Como nunca tinha tido saúde para poder comparar com a doença, tudo me parecia inteiramente normal e eu nunca me impacientava com o estado de coisas. Ah, quanto vale a inocência! Um garoto saudável, que de repente se visse naquela situação, acrescentaria às dores e incomodidades o padecimento intolerável da revolta. Eu, que não imaginava de maneira alguma que o mundo pudesse ser melhor, me adaptava ao pior com a naturalidade de uma lagartixa plantada no teto, inconsciente de que desafia a gravidade.
Levei tanta injeção de benzetacil que, passado meio século, minha bunda ainda dói. Mas na época as picadas ardisíssimas eram rotina banal. Eu presumia que todo mundo tomava toneladas de benzetacil, e me curvava, dócil, ao que pensava ser o destino comum da espécie humana. Minha mãe conta que eu era de um bom-humor surpreendente. Quando não estava tossindo ou delirando, estava rindo.
Depois, quando repentinamente tudo passou e saí para o mundo, ele era tão feio, tedioso e miserável que aí sim comecei a me sentir doente. A reserva de sonhos e imagens acumulada ao longo de anos de torpor físico revelou, então, sua utilidade. Com grande facilidade eu me isolava interiormente do cenário em torno, fugindo para um universo mais interessante, de minha própria invenção. Mas não era do tipo avoado. Desenvolvi uma habilidade incrível de fazer uma coisa pensando em outra, de manter uma ligação mínima com o ambiente para que ninguém percebesse que eu não estava ali. Na escola, simulava atenção com um centésimo do cérebro, enquanto os noventa e nove por cento restantes ficavam pensando em coisas lindas. A coisa mais linda da galáxia era o rosto de minha prima Maria Luísa, para o qual fugia quando a chatice em torno se tornava insuportável. Não era bem uma paixão (Maria Luísa já era moça quando eu usava fraldas): era uma contemplação extática sem desejo, uma delícia sem fim que se bastava a si mesma e poderia prosseguir pela eternidade. Mas Maria Luíza não era o meu único refúgio. Cheguei a ter longas conversas com as pessoas mais chatas do universo, fingindo eficazmente um interesse que as lisonjeava, enquanto por dentro fantasiava as criações mais extraordinárias, enredos inteiros repletos de aventuras, cavaleiros, princesas, castelos e dragões.
olavo de carvalho é muito gente, gente
2.9.03
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