23.9.03

Minha Aldeia

Perdizes é um bairro de topografia muito acentuada. Repleta de barrancos, escadarias e colinas, obriga carros menos possantes a apelarem para a primeira marcha: trata-se de uma verdadeira montanha-russa de ruas. A região, que concentra grande número de prédios residenciais, começou, de dois anos para cá, a ganhar contornos comerciais. Marcas como Blockbuster, Sotto Zero, Bank of Boston e Gelateria Parmalat tornaram-se presentes, causando reviravolta significativa (e simbólica dos tempos de globalização) no perfil de um bairro caracterizado por logradouros com nomes de origem indígena, como Caiubi, Kaiowaa, Apiacás e Caetés, que é a rua onde moro.

Mas, antes de falar da Caetés, uma curiosidade histórica a respeito do bairro. Segundo o historiador Antônio Egydio Martins, no local onde hoje se encontra Perdizes residia em 1850 um vendedor de garapa chamado Joaquim Alves. Sua enteada, Tereza de Jesus Assis, foi uma senhora dedicada à criação, no quintal de sua casa, de grande (e barulhenta) quantidade de aves. Para se referirem à região, os moradores da provinciana São Paulo da época diziam: "nos campos das perdizes", "lá onde há perdizes", "nas perdizes", e assim foi até o nome pegar.

Hoje os sons mais comuns são outros. Em vez de aves, temos buzinas de carros, a Pour Elise de Beethoven no arranjo nauseabundo dos caminhões de gás, e vendedores anunciando o "puro e delicioso creme de milho das pamonhas de Piracicaba". De dois em dois meses, essa monótona trilha sonora tem a sua rotina quebrada por um apito que nos remete a épocas mais românticas. É Severino Rodrigues, 36 anos, anunciando às empregadas e donas-de-casa da rua Caetés e imediações que o amolador de facas chegou.

Severino carrega nas costas uma espécie de bicicleta adaptada para sua profissão; ao pedalar, faz girar um disco de pedra de esmeril, ligada ao pedal por uma tira de borracha, e por meio do qual afia facas e tesouras, a R$ 2,00 ou R$ 3,00. "Trabalho há quinze anos como amolador, desde que cheguei de Sergipe", afirma. Apesar de sua profissão estar condenada à extinção, possui uma freguesia fiel, que visita de dois em dois meses. Durante esse intervalo, circula por outros bairros: Bom Retiro, Lapa, Freguesia do Ó, Ipiranga. Severino trabalha apenas como amolador, e sua renda diária oscila entre R$ 30,00 a R$ 40,00. Dirce Calamita, 60 anos, moradora de um sobrado da Caetés, elogia o serviço: "sou freguesa dele há dez anos". Aparentemente Severino não foi afetado pela chegada ao país das Facas Ginsu.

Dona Dirce mora na Caetés desde 1963, quando se instalou com seu marido, Josué, falecido há três anos. Lembra-se, com nostalgia, de uma época na qual Perdizes era um bairro constituído basicamente por casas e sobrados. Segundo a viúva, os prédios começaram a aparecer nos anos setenta, junto com o milagre econômico. Um marco importante no desenvolvimento do bairro foi a construção da Avenida Sumaré, que cruza a Caetés, em 1965. "Foi o fim da minha tranqüilidade", lamenta. Sua má sorte consiste no fato de morar quase na esquina com a Sumaré, local que se tornou um dos principais points dos notívagos paulistanos, habitués de locais como o restaurante Pantanal e o Fran's Café. Contudo, a Caetés ainda reserva espaço para pontos comerciais "demodês" como a Sapataria Expresso, número 560.

Outro dia precisei recorrer aos préstimos da sapataria a fim de consertar a fivela de um sapato. Apesar do nome, fiquei dez minutos aguardando pelo responsável. João Carvalho, 27 anos, saíra para tomar um lanche, deixando a "Expresso" aos cuidados de um vizinho que "dá umas olhadinhas no local" enquanto o dono está fora. Proprietário e único funcionário da sapataria (na verdade a garagem improvisada de um sobrado), João herdou o ponto do pai, antigo morador do bairro. Gosta muito de morar na Caetés, mas queixa-se do aumento da criminalidade. "Assaltaram minha Brasília 77 há dois meses", reclama. Outro problema social crescente é a proliferação de crianças de rua, atraídas principalmente pela agitação noturna da Sumaré. Os "flanelinhas" são presença constante por toda a avenida, em frente à Blockbuster, Brunella, o restaurante Juca Alemão e outros lugares badalados.

Quanto a mim, moro em um prédio localizado no final da Caetés. A rua, sem saída, desemboca em uma escada que leva até a Praça Irmãos Karmann, logo em frente à Avenida Sumaré. Venâncio, 30 anos, porteiro do meu prédio durante o último turno da noite, aprecia a vizinhança e pretende morar em Perdizes um dia. Gosta do trabalho e dos moradores, mas tem uma queixa a fazer: uma decisão tomada na última reunião do condomínio decretou que a televisão da guarita onde trabalha só pode ser ligada em casos excepcionais (Copa do Mundo, por exemplo). Por causa disso, tem sistematicamente perdido os jogos do Santos. "Agora, só com radinho", suspira.

.Pensar Enlouquece. Pense Nisto.

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