8.9.03

O retorno

Tomado por ondas de tristeza, corri para o fumódromo e fiquei olhando pela janela e tomando café, já que não fumo. Em poucos minutos ele apareceu, vindo lá dos lados da Hípica.
– Aê, mané. Me arruma um cigarro.
– Parei de fumar.
– Hum. Tá explicado o sumiço então.
– Sentiu saudades?
– Claro que não. Senti falta de filar um cigarrinho vez em quando. E de dar nó na sua cabeça, que é o mais legal. Aliás, tá fazendo o que aqui hoje?
– Nada. Vim só olhar a paisagem.
– Que paisagem, mané? Esse concreto todo aí? Fala a verdade, você veio me esperar. Desembucha, vai. Que se passa agora?
– Ué, você não é o sabe tudo?
– É, acho que sou. Mas é que gosto de ver você se rebaixando.
– Espere sentado.
– Eu não sento. Não tenho bunda, esqueceu?
– Nem bunda nem capacidade de entender figuras de linguagem.
– Cê tá se achando esperto, né? Pois bem, não quer falar nada? Então eu falo. Você parece uma garça, sabia?
– Teu rabo.
– Deixa eu falar, porra. Você já reparou nessas garças que sobrevoam o rio às vezes? Branquinhas, elegantes, vôo suave, uma beleza.
– É, são bonitas mesmo.
– Bah, bonitas o quê! Mera superfície! Que que um bicho desse vem fazer no Rio Pinheiros? Vem fuçar na merda! Todo mundo tem asco de nós porque somos feios e agourentos. Mas jamais nos humilhamos a ponto de ficarmos revirando merda à cata de migalhas. Nosso negócio é com a morte. Ser urubu é um sacerdócio, ser garça não é nada.
– Tá. E eu com isso?
– Já disse, você é uma garça. Fica aí querendo parecer limpinho e correto, mas vive chafurdando na merda alheia, esperando encontrar como recompensa de seu trabalho sujo um resto de carinho aqui, um pouco de atenção ali, até amor talvez, embora não acredite que sua sorte chegue a tanto. Oras, seu mané! Você é feio, desengonçado e pardacento. Seja um urubu, voe alto, saia da merda.
– Você acha que ser urubu é mesmo grande coisa, não é?
– Melhor do que ser um mané sem vida feito você.
Ia responder, mas nesse momento uma garça passou voando na direção do rio. Ele fez um muxoxo de desprezo e voou para o lado oposto.

Jesus, me chicoteia

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