22.11.03

:: daquilo que resta ::

Nem saberia dizer, que me faltam as sílabas: olhos inundados gritam palavras, saudades, vazios, ais que aquela voz tão distante quanto íntima plantou aqui, sob uma pele já tão triste e culpada por suores outros em outros tempos. É inverno e neva. Ainda há chuva torrente depois das ventanias nos dias de sol. Na madrugada, a voz que por meses a fio se escondeu no fundo das lembranças encaixotadas soprou nos meus ouvidos uma vida que já não me pertence. E reanimou lágrimas adormecidas. Ressuscitou traumas como os dos tempos de criança, aqueles que se escondem atrás dos gestos. A voz afagou-me como um pai ausente acaricia, à meia luz, o filho que dorme. E sussurrou todos os desfechos possíveis do longa-metragem. E todos acabam em fim. Não há parte dois. Não há remake. Para os meus olhos, que esbarraram nos retratos daquela história, restam os cílios inundados do que não foi, do que não deixei ser, do que jamais será novamente. Resta o sentimento preso na garganta, irreconhecível, distorcido por todos os espelhos quebrados das minhas personalidades, das minhas inconstâncias, dos meus finais inacabados, mas ainda da mesma essência. Resta a dor retorcendo os músculos, ardendo nos poros, pulsando sob a pele. Resta a certeza de que o amor é sempre o mesmo: o que muda são os amanhãs que ele não traz. Doze meses depois, a voz inabalável sussurrou o amor das entrelinhas, impraticável. E por trás dos meus olhos, ainda a imagem do que jamais será, em nenhum tempo, depois de toda a solidão: há alegres verões, outonos de mãos juntas, invernos como este que agora neva branco em mim. Mas a primavera, pra sempre tão ausente quanto presente nas lembranças, jamais visitará meus dias como em outros tempos visitava. Agora eu sei.

. Ponte sobre o caos .

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