16.1.04

Coração leviano

Meu coração tem braços, pernas e rosto. Sim, ele tem. As pernas são curtas e grossas demais, os braços são longos demais, o rosto é feio e os dentes são tortos. Muito parecido comigo, meu coração.
Dormiu durante anos, então foi um susto imenso quando, há quase oito meses, ele foi acordado por uma voz e resolveu sair para ver de quem era: escalou pelo esôfago, dependurou-se na glote, usou a língua como trampolim e saltou. Muita disposição para quem dormia ainda há pouco. Quando pensei que ele ia esborrachar-se no chão – o que seria merecido, dado o atrevimento – ele abriu um par de asas. Feias, murchinhas, encardidas, mas ainda assim! Asas! Deu duas voltas pelo bar e veio pousar em meu ombro. Olhou para a dona da voz e resolveu nunca mais voltar aqui pra dentro, encantado por sei lá que tom de azul nos olhos e sei lá que tom de fina ironia na voz.
Agora ele vive assim, orbitando minha cabeça por onde eu vou. Às vezes ele sai, anda um pouquinho até ali, depois volta. Agora mesmo está tomando café lá na copa enquanto escrevo. Sinto-me meio constrangido com esse coração desavergonhado, sem pudor nenhum de mostrar-se a todo mundo. Eu olho para as outras pessoas, e todas elas têm corações disciplinados e obedientes, muito bem trancados dentro de suas caixas torácicas. Por que justo o meu tinha que ser assim rebelde?
Vez em quando ele pousa aqui no meu ombro, para ler algo que ela tenha escrito, ou então – mais raro – para ouvir sua voz. Às vezes o que ela escreve ou diz o deixa num estado de júbilo insano, e ele sai dando piruetas, fazendo acrobacias no ar, exibindo-se para espanto dos outros e para minha total vergonha. Em outras ocasiões, o que ela diz – ou, mais freqüentemente, o que ela deixa de dizer – o deixa cabisbaixo. Então ele vai para um canto, encolhe as asas e fica lá retorcendo as mãozinhas e resmungando. Nessas horas, eu bem sei, ele pensa em voltar aqui pra dentro e retomar seu sono confortável. Mas seu orgulho é muito grande, e ele jamais aceitaria tal derrota.
Vai ficando por aí, portanto. As pessoas apontam para mim, cochicham, riem. Aos poucos eu me acostumo.

Jesus, me chicoteia!

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