5.1.04

O melhor presente de Natal de todos os tempos

Pra começar a contar a história, dá cá a mãozinha e vamos entrar juntos no túnel do tempo. Blim blim blim blim blim. Pronto. Colégio Santo Ignácio, exatos quinze anos atrás. Está vendo aquela pirralha sentada no meio de centenas de crianças, logo ali, no auditório lotado? Pois é, sou eu. Repara melhor como ela, que sou eu, está se achando muito importante. É que lá na frente, você ainda não reparou, repare agora, está sentado o Fernando Sabino. E ela acabou de ler O Menino no Espelho. E ela acha que é escritora também. Pescou? Ela não quer ser. Ela acha que já é. Na cabecinha dela, está ali num papo entre iguais. Porque nem ela sabe que está diante de um dos maiores escritores da literatura nacional – apesar de ter lido o livro dele e gostado muito – nem muito menos imagina o quanto ainda falta pra que ela seja, de fato, uma escritora.

Lá está o Fernando Sabino, falando, falando, falando sem parar. Daquele jeito mineiro dele, com um sorriso de canto de boca. Puxando o saco da filha dele que é cantora. Não, agora olha rápido. Observa o sorrisinho de reconhecimento na boca da pirralha, que não só conhece a Verônica Sabino mas também usa “perigo é ter você perto dos olhos, mas longe do coração” como trilha sonora pras cenas de amor que ela filma na cabecinha dela, com meninos que nem têm pelinhos ainda. Além de petulante, ela é brega a valer. Imagina essa figura quando crescer.

Bah, nem precisa imaginar muito, porque a figura sou eu, você sabe. E eu sou desse jeito que...bem, você também sabe. Desse jeito que me faz decidir, em plena véspera de Natal, escrever uma carta ao Fernando Sabino. Não, tonto, não é um email. É uma carta de verdade, lembra como é? Papel, caneta, “zelope”, carteiro. Coloco uma resma de folhas brancas sobre a mesa. Folhas brancas, sabe, muito mais chique pra escrever cartas, sem pauta, aquelas linhazinhas que ajudam a sua letra – não a sua, a minha, no caso – a não subir e descer pelo papel como num eletrocardiograma. Mas puxa vida, é uma carta pro Fernando Sabino, o danado merece um esforço.

Começo. Um medo tremendo de errar, porque no papel, veja só, no papel não tem o botão de “delete”. E não tem borracha que apague caneta – ui, blim blim blim de novo e lembremos com um flash de saudade a caneta Replay, aquela que vinha com uma borracha na bundinha. Nem me fale em liquid-paper, porque se tem uma coisa que eu aprendi com o meu professor de Medicina Legal é que liquid-paper é igual a raspadinha, a pessoa sempre fica curiosa pra saber qual foi a besteira que você escreveu embaixo. Eu não podia errar e ponto final. Entendeu? Muita tensão, portanto.

Mas fluiu. Três páginas. Fernando Sabino, seu bandido, você foi no meu colégio e me impregnou com essa sua paixão pelas letras. Agora agüente as conseqüências, estou aqui pra prestar contas e pedir a bença. Foi mais ou menos isso que eu disse. Aí contei do livro. Vou ali pedir ao Papai Noel pra gente tomar um chá no ano que vem e virar melhores amigos de infância. E se um dia você cair no chuveiro, bater com a cabeça e resolver me telefonar, eis o número. E eu dei. O número.

Dobrei as três páginas em três pedaços, porque eu sou ascendente em virgem e maníaca por organização. E porque eu ainda tenho a fagulha cafona da pirralha que você viu lá no começo, no flashback, fechei a carta com um adesivinho em forma de presente de Natal. Quem já foi brega nunca renega as suas raízes. E, aliás, um mero adesivo não seria capaz de satisfazer toda a minha sanha pela cafonalha. Também encomendei uma grande chuva do Natal, que começou a cair pouco tempo antes de eu sair de casa pra entregar a carta, me fez estacionar o carro num lugar proibido e pedir para o namorado correr em câmera lenta, em busca do porteiro perdido, para entregar a carta. Ah sim, porque eu sou cafona e adoro cenas com corridas na chuva à la Bridget Jones, contanto que não seja eu o coitado do personagem que está lá. E de fato a cena, vista de dentro do aconchego do meu carro, foi emocionante. Urra.

Carta entregue ao porteiro, em mãos. Fernando Sabino tinha saído, provavelmente para a casa da Verônica, que devia estar cantando, àquela hora, ao pé da árvore cheia de presentes “dingle bell, dingle bell, periiiiiigo é ter você!”, para deleite do pai coruja. Ligamos o carro e lá fui eu cantar “cadê os meus presentes?”, me embebedando com meia lata de Smirnoff Ice ao pé da árvore da casa da minha mãe. E depois, no meio da madrugada, ainda fui comer a milésima rabanada da noite na casa da Mestra, porque eu sou uma pessoa assim, que nasceu para ter muitas, mas muitas mães mesmo.

A primeira coisa que acontece com a pessoa que passa várias noites de Natal em uma só noite e come várias ceias de Natal com uma só barriga é que essa pessoa – eu, no caso, porque tudo sempre acontece é comigo – precisa dormir pelo menos duas noites seguidas. Mesmo que a segunda delas tenha que acontecer durante a manhã do dia seguinte. Há outras conseqüências mais funestas depois, começando pelo remorso e terminando de um jeito que...bem, você não quereria saber. Acredite.

Vamos nos ater àquele primeiro momento, enquanto eu estou achando muito normal, justo e merecido estar dormindo às duas da tarde. E achando um absurdo, um abuso e uma tremenda sacanagem quando o telefone começa a tocar insistentemente, deflagrando a velha guerra do “quem vai?” Como no caso da corrida na chuva, eu venci.

Mas divago. Ou vai ver ainda estou dormindo, e sonhando, porque foi ele, sim, o namorado, quem levantou para atender o telefone. Mas eis que, oh não, ele disse as palavras mais temidas naquele momento: “só um minuto”, e veio se arrastando na minha direção, oh mundo injusto, eu ali, tão quentinha debaixo das cobertas.

- Alô - e eu amaldiçôo todas as gerações da sua família, famigerada criatura que ousa interromper o meu sono divino.
- Paula?
Não. Madre Teresa de Calcutá.
- Quem é? - eu respondo, com o que seria minha voz mais simpática caso eu fosse uma gralha leprosa em seu leito de morte.
- Caí no chuveiro.

Meu coração pára por um minuto. E pelos próximos trinta e poucos se aquece com aquela antiga e conhecida voz. Fernando Sabino. Meu melhor amigo de infância.

Epnion

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