20.1.04

Ser francês

Ser francês é complicar as coisas, como por exemplo escrever livros sobre “a narrativa”, “o lazer”, “o olhar”. Um bom anglo saxão tiraria o cachimbo da boca e diria que narrativa é só uma historinha, lazer é bom, e olhar é só olhar, que é que tem?


O francês pega um pouco de água com a mão, e começa a dizer para a classe, “O que é isto, esta imagem, esta mão contendo em sua superfície uma porção de água como um lago? Podemos a princípio pensar...”, e continua falando sobre isso muito depois que a mão está seca.


Capítulos de Bachelard sobre “o fogo”, “a lareira”, “a idéia de domesticidade”. Eles podem falar horas sobre qualquer assunto, andando de triciclo e mantendo cinco bolinhas de borracha no ar enquanto fumam gitanes.


E eis o método francês de escrever: eles pensam enquanto escrevem. A prova disso é a sucessão de sinônimos ou quase sinônimos, como se eles estivessem procurando a expressão exata às apalpadelas: “a figura do maldito, do pária, do condenado pelo tribunal invisível da sociedade, daqueles que são enforcados no rito diário da sociedade civilizada, dos cafés, do trabalho, do amor – disso que chamamos amor, que chamamos casamento, na cidade burguesa que é uma vasta teia de aranha e onde nós somos a aranha e as moscas, que é um coliseu eterno onde somos cristãos e leões a um só tempo...”


Escrevem por associação de idéias, entram num transe.


Sim, ser francês é pensar enquanto se escreve, é pensar tarde demais; se os franceses parassem pra pensar antes de escrever, todos os seus livros teriam um só capítulo, e o resto seria e bibibi bobobó.


- Gaston Bachelard, sobre o que é o seu livro?
- Sobre o fogo e umas coisas assim. Sei lá eu.
- Bernard-Henri Lévy, sobre o que é o seu livro?
- Ah, era uma coisa sobre liberdade, não era?
- Jean-Paul Sartre, o que nos diz o seu livro sobre essa admirável figura de maldito, Jean Genet?
- Esqueci, era sobre Genet, eu dizia umas coisas sobre Genet, não dizia? Uma figura, sei lá, meio mártir, meio palhaço... Que era um maldito, e um santo, e bibibi bobobó...

Alexandre Soares Silva

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