19.2.04

Bico calado, toma cuidado, que o homem vem aí

No caminho da estação do trem até o escritório tem uma floricultura. A primeira vez que passei por ela, não percebi nada de incomum, apenas flores, arranjos, baldes cheios de rosas, gérberas, lisiantus e afins. Na segunda vez, achei curioso, mas nada demais. Quando na terceira o fenômeno se repetiu, torci o pescoço procurando o passarinho. Explico: era passar ali na porta e um passarinho fazia um piu-piu, sempre igual. Decerto um boneco daqueles com sensores, que dispara ao alguém passar à frente.

Tornou-se rotina. Comecei a aguardar com alguma ansiedade o momento de passar em frente à porta da floricultura e ouvir o assovio artificial do boneco que nunca, jamais vi, por mais que vasculhasse o interior do lugar com os olhos procurando não dar muita bandeira pros lá de dentro. Era pisar a calçada contígua, ajeitava o livro embaixo do braço, enfiava as mãos nos bolsos e apurava os ouvidos. Aquele piu-piu era um "have a nice day", pra mim, um sopro de bom humor logo no comecinho do dia. Você faz idéia do que significa um sopro de bom humor logo no comecinho do dia? O quanto isso vale?

É que faz já uma semana que o passarinho morreu. Sei lá, não toca mais piu piu nenhum quando passo lá. Maior frustração. Tentei até mesmo pisar dentro da floricultura uma vez, a ver se chegando mais perto... nada. Me vi de barba por fazer, o olhar desvairado, andando por aí sem sentido. Minha mulher reclamando, as pessoas passando a me evitar, eu arrancando os cabelos pelas esquinas, refém de um mistério insolúvel. Me vi também um dia parando ali e perguntando: ei, cadê o bichinho que apitava aqui todo dia quando eu passava?

Não, não. Nem uma coisa nem outra. Sobreviverei na minha sandice moderada, a despeito de não ter mais esse sopro matinal. E também não vou perguntar nada ao povo da floricultura, que um pouco de mistério faz bem.

Provavelmente eles se encheram o saco de ouvir aquele piu piu todo dia o dia todo sempre que qualquer um passa ali, e deram um fim nele. Não sei. Um pouco de mistério faz bem.

É por aqui que vai pra lá?

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