A QUEIMA
-- Arnaldo, queima todos os meus escritos.
-- Que escritos, Vanderley?
-- Aqueles, inéditos, ali, do lado do guarda-roupa. Cof.
-- Como assim, aqueles inéditos, Vanderley? Claro que são inéditos. Você nunca publicou nada!
-- Sem detalhismos acadêmicos, Arnaldo. Pega aqueles meus escritos ali. Isso. Escuta. Quero que você jogue todos na lareira. Sem vacilar. Sem pensar no que a história, com agá maiúsculo, vai registrar. Diz que eu pedi veementemente pra que você fizesse isso, diz que...
-- Lareira, Vanderley? Lareira? Desde quando esse teu dois quartos tem lareira?
-- Você pormenoriza demais, Arnaldo. Faz o seguinte. Pega então esses fósforos aqui e queima os escritos lá na varanda. Enquanto o sol da tarde inunda de um soturno vermelho a sala -- guarda bem a cena na memória, pra quando você for contar a história -- , aí você...
-- Tá doido, Vanderley? Na janela? Vai voar papel queimado e entrar fumaça em tudo que é janela do prédio! Quer que os vizinhos chamem o síndico?
-- OK, OK, Arnaldo. Põe no microondas, então! Enfia os escritos no microondas, programa pra cinqüenta minutos e deixa os papéis lá. Uma hora eles pegam fogo! Cof.
--Tá, eu ligo o bendito microondas. E não precisa ficar me pedindo café, a garrafa térmica tá aí do teu lado -- se serve sozinho, pomba! E ainda pedindo em inglês. Que frescura.
-- Como assim, Arnaldo?
-- Essa babaquice de "coffee", "coffee", toda hora. Soa pedante. E chato.
-- Eu não tou pedindo café, Arnaldo. Isso é tosse.
-- Ah... é "cofe", então? Mm. Sei. Pois soou falso, sabe.
-- É tosse de moribundo, Arnaldo.
-- Que moribundo, Vanderley? Você pegou um resfriadozinho.
-- Não seja frívolo, Arnaldo. Tou morrendo. E foi por isso que te chamei aqui. Pra atender a um último pedido: queimar meus escritos inéditos. Espera eu morrer e queima tudo, sem dó nem piedade.
-- Mas você não tá morrendo, Vanderley. Você só...
-- Não adianta tentar me consolar, Arnaldo. E tem mais. Tem mais. Chega aqui. Como você é o meu melhor amigo, eu vou te pedir ainda um outro favor. Um favor especial.
-- Eu não sou teu melhor amigo, Vanderley. Eu sou teu colega de escritório. E que favor especial é esse?
-- Cof. Seguinte, Arnaldo: se na hora de tacar fogo você hesitar, não fica na dúvida: hesita, sim. Se você achar melhor não queimar, não queima. Mantém tudo intacto! Publica! Mas ó: não diz que eu pedi esse favor especial! Na hora de contar a história, vai só até o ponto em que eu te pedi pra queimar. Viu? Diz que você não queimou por decisão sua! E após a publicação, espalha pra todo mundo que por um triz a História ficaria sem conhecer meus escritos!
-- Ah, quer saber, Vanderley? Chega. Eu tava com a Célia e as crianças no clube, tomando minha cervejinha, aí você me liga no celular, diz que tem algo urgente pra dizer, caso de vida ou morte, pá, pá, pá, me faz vir correndo -- pra pedir pra eu queimar... esses escritos aqui?
-- O que você quer dizer com esses escritos aqui?
-- Agora é que eu tou vendo: isso aqui o balanço contábil do escritório, Vanderley! O balanço que você fez! Que história é essa de pedir pra eu fingir que vou queimar e na última hora acabar não queimando? Eles vão ser publicados no jornal, na seção de balanços anuais, de qualquer forma!
-- Você não entende, Arnaldo? Eles vão ser publicados, sim -- mas se você contar que no leito de morte eu pedi pra que você queimasse tudo, e ainda assim você publicou por teimosia, eles vão adquirir uma aura literária! Vamos elevar a escrita contábil a um status nunca sequer sonhado! Vamos fazer história! Vou ficar famoso depois de morto, você vai ser meu Max Brod -- ei, aonde você vai, Arnaldo?
-- Vanderley. Seguinte. Acho que vou deixar você descansar -- esse resfriado deve ter mexido com teus miolos. Vou voltar lá pro clube que eu ganho mais. Ah, e por que você não aproveita?
-- Aproveitar o quê, Arnaldo? Cof.
-- Aproveita que eu liguei o microondas e requenta esse café aí. Ele tá uma bosta.
Praia do Nelson
3.2.04
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