11.3.04

Hoje e aquele dia

Não faço idéia do porquê, na verdade o melhor é nem tentar relacionar uma coisa às outras porque elas não têm rigorosamente nada a ver, mas depois do almoço de hoje, quando me dei conta do quanto a tarde estava bonita e de que não vai chover de jeito nenhum pelos próximos dias e que, graças a Deus, ninguém querido está prestes a ir embora de lugar algum por agora, nesse exato momento me lembrei daquele dia passado, o dia em que ela chegou lá em casa contando o caso do menino de quem arrancara um dente de leite.

O caso era assim: ela arrancou o dente do menino e pôs o pedacinho branco dentro do bolso da sua camisa de uniforme dizendo que o colocasse debaixo do travesseiro durante a noite e fizesse um pedido. Aí, no dia seguinte, o menino voltou pra escola com o dente exatamente naquele mesmo bolso e disse professora, minha mãe ficou muito brava com a senhora, mandou colocar meu dente de volta no lugar!

Enquanto dizia essa frase assim, em vivo e concreto discurso direto, não parava de gargalhar. Eu, que tinha lá pelos meus sete anos de idade na época mas me lembro de tudo como se fosse hoje, fiquei muito espantada com aquela gargalhada sem fim e, na minha cabeça de menina, vi naquilo tudo ares muito cruéis, brutos, atrozes, maus.

Passei vários dos dias que se seguiram àquele entregue a elucubrações mirabolantes: Será que ela é má? Será que vai ficar arrancando meus dentes assim também a vida toda? Será que as mães dos alunos odeiam tudo o que ela faz? Ai, será que ela é a professora mais malvada da cidade? Foram mil invenções e interrogações alimentando meus temores de menina até que, nessa mesma época, ela começou a me levar pra escola em que dava aulas.

Então conheci o tal menino banguela, brinquei com todos os seus alunos, merendei sopa sentada naquele banco gelado de alvenaria de escola pública. Ela me ofereceu giz pra brincar naquele quadro gigante, me deixou fazer dupla com alunos que estavam sozinhos pra fazer trabalhos, me deixou brincar de elástico com as meninas no recreio. Não sei, pode ser imaginação, mas acho que foi com essas idas à escola dela que os tais temores de menina passaram, porque desde então parei de pensar na possível malvadeza da minha mãe ou em dentes de leite sendo arrancados à revelia de crianças e suas mães.

Bom, é isso. É isso e, por incrível que pareça, hoje não quero chegar a lugar nenhum, pra mim está ótimo ir dormir tendo alcançado apenas esse conjunto de fatos, o que eu queria de verdade era só dizer em algum lugar que foi muito bom ter lembrado disso tudo do nada, muito bom mesmo, então pronto: está dito.

Da Estrangeiridade

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