17.3.04

Sob as Pelancas Viris de Marlene Mattos...

Não sendo do Rio, queria falar mal do Rio. Mencionar os chiados cariocas que lançam perdigotos nos meus olhos abertos e inocentes de paulista. A preguiça, a vagabundagem, o eterno arrastar de chinelos sobre as pedras portuguesas nas calçadas, em frente a lojas caras demais. Mas eu ando arrastando o chinelo, eu adoro isso; e acho que uma certa preguiça é uma coisa boa, porque a preguiça anula os outros pecados todos. Deus sabe como eu seria vítima da luxúria, da ira e do orgulho se não preferisse tirar sonecas. Assim muitos cariocas são capazes de ir para o céu porque foram virtuosos por preguiça. E não vou reclamar do sotaque dos cariocas, ou pelo menos não muito – porque numa mulher sexy até um sotaque atroz fica bem.

Como eu adoro o Rio. Certo, levo um susto cada vez que ouço funk carioca saindo do carro ao lado – by Jove, isso é o ponto mais baixo do espírito humano, seguido de perto do infomercial e dos diálogos das novelas. Das janelas dos carros importados no Rio, por escolha de jovens de classe média alta que evidentemente tomam muito leite, sai o equivalente musical do cheiro de carniça que vem às vezes quando estamos correndo na Lagoa e passamos perto de um cachorro atropelado sob o sol. Mas será o funk carioca assim tão pior do que a música das classes baixas de São Paulo? É menos choroso, menos patético, menos bundão.

E as livrarias de Ipanema – Travessa, Travessinha, Letras e Expressões – gosto tanto delas que queria ser enterrado ali (contanto que não fosse na seção de livros da Conrad. Aí também não). Mais perto dos livres de poche, mais perto da biografia de Balthus. Enterrado de bermuda, camisa polo, chinelos. Debaixo do chão eu abriria os olhos cada vez que chegasse um carregamento de livros novos, eu ficaria feliz. E que ângulo para ver certas mulheres de saia.

Muitas das coisas que senti na vida, nunca fui capaz de escrever sobre. A sensação de estar no lobby do Hotel Tivoli em Lisboa, quando eu era criança – o mármore, os jornais de vários países, os cheiros de charutos e cachimbos e perfumes – aquela sensação de cosmopolitismo sobre a qual Mário de Sá Carneiro passou a vida toda tentando escrever. Homens em ternos creme falando em turco. Uma família, quatro filhas, falando alemão. Eu, sentado numa cadeira de vime lendo Lovecraft, observando tudo.

A sensação, aos vinte anos, chegado na véspera a Paris, de estar no Louvre olhando um armário com peças de porcelana, e ver no vidro do armário o reflexo de um rio verde-azulado que corria - e perceber que aquilo era o Sena, e me virar para trás para ver o Sena pela primeira vez. A sensação de estar dentro dos Invalides, vendo o túmulo de Napoleão no interior da cúpula, e sentir uma ambição incontrolável (como Balzac) de ser o Napoleão das letras - de ter merecido, ao morrer, ser enterrado com pompa igual. Exceto que fui pagar a entrada e não vi que havia uma divisória de plástico, paaam, bati a cabeça na divisória, para a diversão de turistas guatemaltecos e do cobrador senegalês, o maldito.

E também queria escrever sobre a sensação de estar na Urca, no banco de passageiro do carro de um amigo, e chegar na avenida Portugal e subitamente (é subitamente) ver a enseada sob o sol, e os barcos.

Alexandre Soares Silva

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