24.5.04

déco é gordo. déco nunca teve nada de importante a dizer, nunca elaborou raciocínio algum ao qual alguém já não tivesse chegado, lendo ou pensando, nuncas colaborou nas discussões em aula sobre o assunto que fosse, nunca gravou um vídeo amador e vendeu para alguma tevê, nunca fotografou nenhuma celebridade em trajes íntimos ou em pêlo, nunca foi célebre, nunca jogou na megasena, nunca torceu pelo mocinho, sequer pelo bandido, nada.

déco levava sua vidinha, tirava a nota média, sentava no banco que estivesse vazio, respeitava as filas e nelas entrava onde indicado, pagava as contas em dia, não era nada especial. déco não poderia sequer aspirar ao reconhecimento, dado que este, em tempos remotos, era dado apenas aos que o mereciam, de alguma forma, e não por apenas terem seus rostinhos aparecendo em algum meio. déco tinha azia de vez em quando, uma diarréia ocasional por ter misturado comidas propícias a tal, tinha dores de cabeça esporadicamente e agradecia à existência da farmacêutica, da qual não tinha o menor conhecimento, e vivia sua vida ali sentado no banco, na fila, no banheiro, arrotando amargo, fazendo a barba.

mas déco tinha um segredo. assistira certa vez a um filme, numa das vezes em que esperava o momento ideal em que sentiria sono e dormiria para recomçear a vida que nunca tinha começado de verdade. não gostava muito de filmes, normalmente não levava deles aprendizado algum, quando muito o tempo de entretenimento que o suporte oferecia. o filme era estranho, mais estranho do que déco podia conceber, mas ainda assim não conseguia largar dele, seus dedos não conseguiam fugir do canal que exibia a obra, e ele entendia. conseguia elaborar toda a história em torno do filme, toda a relação de significados ali contida, todo o universo narrativo e implicações imbricadas na película telecinada. e déco entendia tudo.

no dia seguinte, já no ônibus, ao lado do colega de trablho de que sempre pegava a mesma linha três paradas adiante, déco comentou o explicou todo o filme nos pormenores que lhe tinham relevância. o colega, depois de muito ouvir e acusando o momento da descida deles do coletivo, respondeu.

"que nada, nem vem que ninguém entende david lynch".

como assim 2 uísque?

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