5.6.04

Hoje tente me amar. Venha, levante o queixo. Deixa que eu te dê uma rosa, um escravo, um torrão de açúcar. Hoje, tente fazer com que eu seja indispensável, com que eu seja matéria-prima dos seus dias, esse que, quando se ausenta, torna a respiração dificultosa e inútil, porque viver, sem mim, se torna inútil. Hoje. Me dispa em ternuras tão ingênuas pra que quando estivermos inteiramente nus, um vele com inconsciência e febre a existência do outro e então, finalmente, não existiremos. Não seremos senão vultos morenos e plásticos, nódoa no lençol alvo. E a rosa, o escravo, o torrão de açúcar descansarão em esquecimento enquanto o fogo emprestar sua dança furiosa, enquanto o pavio arder submisso e intranqüilo. Hoje me faça sua essência, sua causa e efeito. Faça com que esse gesto de adoçar com colônia tuas veias e vestes seja um jeito de dizer que me ama. Hoje borde detalhes em teus vestidos compridos, costure flores de vôos longínquos. Espere eu voltar de uma guerra infinda, mesmo que receba carta que me acuse morto, cotovelos envelhecidos no parapeito, me espere com resignação de viúva e fervor de amante.
Componha uma sonata, traduza um soneto. Hoje tente me amar. Venha, levante o queixo.

Tabacaria

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