6.10.04

Bad Trip - Bolivia 2004

Meus níveis de ódio estavam meio baixos. Então em julho resolvi viajar para Cochabamba, na Bolívia, uma vez mais.

Numa quinta-feira tomei ônibus para Campo Grande, e não tive nenhum problema além de sentar ao lado de um cara de bafo reprovável que tentou puxar assunto, ao que foi grosseiramente cortado.

Para minha surpresa não tive que esperar muito pra continuar viagem rumo a Corumbá, num ônibus cômodo e sem incidentes além do chato facilmente ignorável que quer conversar com todo mundo.

Era atípico o frio que fazia na região de fronteira... geralmente a temperatura lá fica bem acima dos trinta graus, mas dessa vez estava em torno de quinze. De todo modo, tomei um moto-táxi que me cobrou um preço camarada e cheguei à fronteira. Fiquei espantado com a falta de pilantragem e a velocidade com que saí do guichê de "migración", no lado boliviano, com meu passaporte carimbado.

Quando passei a fronteira era sexta-feira, às duas e meia da tarde. Fui descobrir que um trem tinha saído à uma e meia - os horários haviam mudado desde a última viagem. À noite outro trem ia sair, mas estava com todas passagens vendidas.

Então descobri por que estava tudo lotado... no domingo ia acontecer um plebiscito, e quando há eleição na Bolívia é proibida a circulação de automóveis! Os trens também deixariam de sair, desde sábado. Logo, o último trem que sairia em três dias seria o de este dia (sexta) à noite - e estava lotado.

Fui ver os ônibus que faziam o trajeto, e também não havia lugar, recebi vagas esperanças de que talvez houvesse outro na manhã do dia seguinte.

Então passei o resto da tarde esperando o trem da noite, para ver se sobrava lugar. Numa infantil demonstração de seus pequenos poderes, o maquinista não me deixou subir, apesar de alguns lugares aparentemente vazios e dos protestos de alguns passageiros comovidos com a minha humilhante situação. Mais tarde me arrependi de apelar para os sentimentos do maquinista ao dialogar sobre o horrível fim de semana que passaria sozinho na momentaneamente fria e sempre tediosa cidade fronteiriça de Porto Quijarro, ao invés de insultar a mãe deste pequeno homem - teria o mesmo resultado de não subir no trem, porém uma satisfação pessoal maior. Que remédio, fui procurar um hotel.

Deixei as malas no hotel em torno das oito da noite e fui uma vez mais à saída de ônibus. Um grande grupo de bolivianos esperava um último ônibus para esta noite, e tentei convencer o responsável a deixar-me subir, mesmo que sem assento. Ele cedeu rapidamente e fui buscar as malas no hotel, onde a gentil velhinha não quis cobrar nada.

Imaginei que estivessem abrindo uma exceção para mim no ônibus, vã esperança... outros três homens pagaram cinqüenta bolivianos cada para viajar sem assento também. Ao subir no ônibus, vi que não éramos os únicos... o fundo do ônibus (carinhosamente chamado pelo pessoal da companhia de "camarote") seria dividido entre umas quinze pessoas, além de diversas crianças. Algumas pessoas haviam pago por assentos, e ao subir se deram conta que faltavam os últimos assentos. Como haviam pago noventa bolivianos, queriam pelo menos o ressarcimento do dinheiro... HAHAHA!!! Ressarcimento... HAHAHAHAHA!!!!
Então estava este grande grupo atrás de um ônibus brasileiro, que provavelmente levou escolares no Brasil à aula durante muitos anos até estar muito velho, na década de 80 - quando foi generosamente doado à Bolívia.

A estrada Porto Quijarro-Santa Cruz de la Sierra sempre foi um mistério para mim até este dia. Além de ter esta dita horrenda estrada pela frente, tinha que ir sentado em uns quarenta centímetros quadrados do gigantesco estepe que estava deitado no fundo do ônibus (as áreas mais cômodas haviam sido tomadas pelas mães com crianças).
Para dar um insight mais apropriado, eu era de longe a pessoa mais branca dentro do ônibus. Era provavelmente o único indivíduo com todos os dentes da frente. E o único estrangeiro. Isso tudo somado ao frio que fazia e à poeira que levantava e ao desespero de todos por chegar a Santa Cruz antes que bloqueassem as estradas. Havia ainda o choro intermitente de crianças e a comida gordurosa caindo pelo chão.

Logo ao subir, um cholo se dirigiu a mim:"ahora vas conocer la verdadera Bolívia!"... Muahaha! Andam assistindo muito Tarantino nesses canais piratas...

Ao colocar minha pouca bagagem no lugar acima da cabeça dos passageiros (o resto estava amarrado em cima do ônibus) notei alguns limões ali. A princípio um mistério, logo me dei conta que eles estavam ali para aromatizar o ambiente, engenhoso como num mictório.
Depois de muita chorumela e reclamação dos que queriam assento e dos que reclamavam da qualidade do veículo, partimos. Em poucos minutos, paramos. Furou o pneu. Depois da troca, sentei-me sobre o agora furado e sujo pneu que jazia no fundo do veículo.
A viagem prosseguiu horrorosamente, eu dispunha de muito pouco espaço para sentar e alguns poucos centímetros para pôr os pés, nenhum lugar para encostar as costas, e com amortecedores re-re-recauchutados. Consegui cochilar sobre os joelhos por diversos intervalos de segundos até o amanhecer, quando minha coluna parecia bem esmigalhada. Em pé me sentia mais cômodo para então.

Um indivíduo se dirigia a mim de vez em quando tentando ser gentil, e apesar de eu entender e falar bem o espanhol, ele fazia questão de repetir tudo que dizia lentamente duas ou três vezes.

Depois da parada em um vilarejo para o café da manhã, o ônibus parecia ir bem até o pessoal do fundo escutar um som estranho e alguém gritar para o motorista "PÁRA PÁRA PÁRA!!". O motorista não havia se dado conta, mas uma das rodas do ônibus havia se soltado e estava rolando NA FRENTE DO ÔNIBUS!!

Sim, a roda estava à frente do ônibus. Era apenas um pneu das rodas duplas de trás, mas o outro pneu já havia soltado e estava rolando atrás do ônibus. Isso exigiu uma parada. todos desceram, esperamos pelo conserto, e não demorou mais que duas horas. Depois que empurramos (empurramos inúmeras vezes, não vou citar todas mas subentenda que todos baixam para empurrar a cada três horas), o ônibus seguia feliz e saltitante na estrada de chão mais ou menos batido, quando escutamos outro som nas rodas de trás... o pneu estava soltando de novo.

Mais uma parada e seguimos. Algumas horas de desagradável viagem, e o ônibus tem que dividir a estrada com outro que vem em sentido contrário. Parece simples, mas encalhamos na lama. Descemos para empurrar, o ônibus quase vira em cima de todo mundo, mas com sucesso seguimos.

Na parada seguinte para almoço, pelas cinco da tarde, tomei coragem e comi um frangão frito com batata frita feito na hora - não comia desde que saímos. Comprei umas bolachas para suportar o resto da viagem. Começava a anoitecer, e o motorista começou a acelerar. Isso me lembrou o Mad Max, na hora do crepúsculo, num ônibus velho, numa estrada empoeirada próxima a uma linha férrea... mas no Mad Max os inimigos estavam FORA do veículo. Naquela lata velha a mais de oitenta por hora na descida, cercado de gente que me olhava como o ser estranho que sou, com tanta poeira dentro do ônibus que deixava minha visão borrada, foi uma experiência única. Além de tudo, a não muito funcional porta de trás foi transformada em mictório.

De todo modo, estávamos já relativamente próximos de Santa Cruz. Paramos na estrada depois do anoitecer de sábado porque policiais não queriam deixar veículos seguirem àquela hora, mas depois nos demos conta que era apenas um subterfúgio para a corrupção. Depois de algumas piadas amigáveis sobre eu estar cor de terra ("miren, está todavía más blanco!!"), pagamos propina e seguimos.

Já se haviam passado trinta horas de uma viagem prevista para no máximo quatorze. Entrando em Santa Cruz, pára mais uma vez o ônibus, misteriosamente. Tentamos empurrar e não parte. Depois de tentar nos convencer a ir dali mesmo para a cidade, o motorista revela que acabou o combustível. Alguns fazem uma vaquinha e compram um pouco de diesel. Mesmo com combustível e muito trabalho braçal dos passageiros o ônibus reluta em dar partida, mas insistimos por mais algum tempo até que sai. Chegando na rodoviária fechada dou graças (a quem?) e vou pro hotel logo em frente. Eram mais de três da manhã de domingo.

Consigo um quarto barato com um recepcionista bizarro, digno da Cripta do Terror (Frazetta-style), e ao acender a luz uma barata na parede me dá as boas-vindas.
Fazia muito frio em Santa Cruz, e fui tomar banho para tirar algumas das camadas de poeira do meu corpo... não tinha água quente. Tomei um banho gelado no banheiro coletivo e malcheiroso e deitei apenas com um lençol (estava cansado demais para descer e pedir cobertores).

Um dia ainda vou rir disso.

O dia seguinte não foi de todo horrível. Descansado, esperava poder tomar um ônibus para Cochabamba no mesmo dia, apesar de o transporte só estar oficialmente liberado depois da meia-noite. Assim mesmo, comprei uma passagem para as quatro da tarde - o ônibus só saiu às oito da noite.

Depois disso tudo, o resto da viagem foi fichinha e sequer merece ser citado.
O caminho de volta não teve nenhum ponto especial, além do tratamento nonsense que recebi de mãe e filha no trem de volta e do fato de eu sentar sempre ao lado de alguém que ronca - às vezes tão alto quanto algumas criaturas de Lovecraft.

Ódio

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