2.11.04

Memórias de Finados

SEMPRE chove. Não sei se o truísmo se aplica a outras regiões do risonho e franco Bananão mas, no contínuo espaço-temporal Noronha, o feriado que eu “telescopei” na infância sob a definição “dia de todos os mortos” envolve necessariamente chuva. Na infância, envolvia também necessariamente viagem, ou melhor, aquela espécie de migração de horda mongol que nossos pais então entendiam por lazer –babbo, mamma, mana, nonna, tia(s)-avó(s), Fudílson, e mais tias e tios, alcatéias de primos, caixotes de comida, engradados de bebida segunda linha (por exemplo, refrigerante “Cerejinha” e “Laranjinha”), tudo embarcado laboriosamente nos Galaxies, Dodges, Veraneios e outros paquetes low-tech sobre rodas que nos serviam de transporte durante horas de congestionamento a caminho da praia ou do campo, e conduziam a outras tantas horas infernais de confinamento chuvoso para as crianças, aprisionadas em grupo de 14 no apartamento de um quarto em São Vicente.

E se bem a descrição acima seja um resumo razoavelmente realista de uma boa dezena de Finados, era tudo muito divertido. Hoje, como fotos de convescotes comunistas retocadas à força de cisões, execuções, expurgos, dissidências e expatriações que só deixam Fidel e a múmia de Lênin um em cada ponta do quadro, a foto Noronha de Finados teria muito mais lacunas que presenças. O 2 de novembro se tornou mesmo um “dia de todos os mortos”. As viagens, quando ocorrem, são muito mais confortáveis e, suponho, muito menos divertidas. Tudo mais mudou. Mas ainda chove, e não sei se por insônia ou essa nostalgia idiota que me vem tomando nas últimas semanas, eu vejo os mortos da minha vida na chuva –Vó Joanna, tia Hilda, Bea, os tios, as tias, os amigos perdidos. O véio. Não posso afirmar que lamento cada um deles com aquele pesar exquisite dos estetas devotos do láudano, mas alguns ali nunca deixam de fazer falta, e servem como abre-alas para uma segunda multidão de “mortos”, por sorte menos literais mas ausentes da mesma forma. Como se essa garoa ranheta servisse de prece para todos eles.

Talvez a solução ideal seja mesmo a mexicana, transformar o Finados em um segundo carnaval, preparar um altar de muertos em casa e sair bailando pela rua, depois da refeição acompanhada por golletes e pan de muerto, até terminar a baderna com uma imensa bebedeira na terça-feira, vestindo a careta, a máscara de espantar mortos que serve para reconduzir a legião de ceased-to-be de volta às covas, ao final da festa. Porque o Noronha pentelho que observava com olhar tão crítico as mazelas familiares nas viagens de Finados de sua infância aprendeu, enfim, tantos mortos mais tarde, que os rituais existem para fins muito palpáveis, e que a chuva oficial do feriado lava indistintamente as lágrimas e a manguaça. Como escreveu o notável compositor mexicano Don Pedro Townshend,

"Only love
Can bring the rain
That makes you yearn
To the sky
Only love
Can bring the rain
That falls like tears
From on high

Love
Reign o'er me
Rain on me
Rain on me"

E que todos fiquem em paz.

Noronha, o meditabundo R.I.P.

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