26.11.04

POR QUE VOCÊ NÃO MORRE?

Acordou com a sensação vaga de que tinha sonhado novamente com ele. Merda. Dessa vez um sonho daqueles que não se consegue lembrar nada, fica só um gosto estranho na boca, uma ressaca amanhecida, um anexo indecifrável de memória ao corpo que pesa como reboque. Foi ao banheiro escovar os dentes e a presença dele parecia vesti-la no lugar do roupão, uma tatuagem em alto relevo que lhe ardia a pele.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Tomou café na frente do computador abrindo os mails. Lá nem tão no fundo, a esperança de que entre os remetentes, na caixa de entrada repleta, estivesse o nome dele. Um convite. Um oi. Uma mensagem qualquer encaminhada. Uma corrente de felicidade - ele não era disso. Mas não.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Terminou de se arrumar, maquiagem, cabelo, um casaco caso esfrie, os papéis pro escritório, o livro que Margareth pediu emprestado e o olhar na estante procura o livro que ele lhe deu. Ganas de abrir e olhar a dedicatória, o formato da letra absolutamente lindo, perfeito, a frase que tinha lhe escrito meses antes e que não era uma declaração de amor, mas era muito mais do que ela imaginaria ver escrito por ele. Resistiu.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Antes de sair, uma passada no banheiro para espirrar perfume. O mesmo que ele lhe dera dois anos antes e cujo frasco, já vazio, morava no fundo da prateleira. Pensou em jogar fora.

Me faz um favor? Por que você não morre?

No escritório, as horas voaram, mas o pager ficou aberto. Vez que outra, ela espiava para ver se por acaso o ícone que o representa não mudava de Off para Online. Mas não. Também não chegou nenhum mail dele. Raios de esperança renitente.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Foi almoçar sozinha. Na dúvida sobre a que restaurante iria, seus passos a levaram refém ao Bistrô da praça. Sentou-se e o prato do dia era filé recheado de tomates secos. O mesmo que dividiram na vez que almoçaram ali. Ele tão elegante no terno verde escuro. A briga pelos pães do couvert. Ele encantador falando de boca cheia. A mão sobre a dela num lugar público.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Na volta ao escritório, passou por alguém com o mesmo perfume dele. O cheiro dele. Entre a tontura e o arremesso de volta ao aconchego do seu peito, a boca se enche de saliva. Nunca havia salivado ao sentir o cheiro de ninguém, a não ser o dele. E agora, ali, no meio da rua, alguém com o mesmo perfume.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Saiu mais cedo e passou no supermercado. Frutas, pão, café, queijo, iogurte. Ele costumava abrir a geladeira da casa dela para ver o que tinha. Sempre fazia um inventário em voz alta, comentava o inusitado de algumas coisas, como sua geladeira era bem fornida. Bem fornida, aliás, era expressão dele. Suas ancas eram bem fornidas. Pegou quase sem pensar a cerveja da sua marca preferida.

Me faz um favor? Por que você não morre?

Foi para casa, jantou, ouviu músicas. Resolveu não resistir mais aos pensamentos insistentes e ouviu todas as músicas que faziam referência direta a ele. Todas. Uma por uma. Chorou alto como um criança. Um choro de machucado, de ferimento, um choro que pede um colo negado. Sentou-se no chão, braços ao redor do corpo buscando um abraço de si mesma e embalou-se para se consolar. Lágrimas grossas escorriam pelo rosto cada vez mais inchado, cada vez mais quente. Dormiu sem forças e com a cabeça latejante.

O telefone toca no fundo do fundo do fundo da madrugada de sono quase uma sirene um alarme uma buzina e outra e outra e outra e outra vez alguém voz conhecida talvez uma ex-colega de faculdade talvez talvez lhe diz que ele está morto morto ele morto morto como acidente de carro um acidente horrível horrível diz a voz metálica hoje velório agora ela ouve um choro de criança ao fundo uma criança chorando quer vê-lo precisa vê-lo morto noite muito escura uma madrugada de breu e ruas que se enlaçam se dividem sobem e descem e o portão da capela do cemitério está encostado nem fechado nem aberto ela entra sem pernas e sem pés e não vê o rosto de ninguém não sabe se é vista ou se sabem que ela está ali quem é porque veio o caixão no meio da sala escura é grande e escuro e nele dentro dele terno verde escuro ele morto de terno verde escuro ela aproxima-se devagar lenta cuidadosa como se obedecesse a um ritual as pessoas de dentro da sala conversam entre si em voz baixa mas não têm olhos nem bocas ela chega perto o suficiente e sente seu perfume o mesmo perfume de sempre o perfume do homem que passou na rua e saliva quer beijá-lo não pode ele ali deitado morto não parece morto não pode beijá-lo em público morreu onde estariam a mulher e o filho a mulher e o filho onde estavam eles agora que ele estava morto ela teme que eles a vejam sobre o corpo dele e desconfiem do que ela era do que foram lhe ocorre uma piada de mau gosto vergonha culpa uma dor lhe mói os ossos.

No outro dia não foi trabalhar. Ligou para a empresa e avisou que não passava bem. Tomou um calmante e dormiu, e assim a sexta-feira emendou com um final de semana onde a chave da porta do apartamento não foi girada nenhuma vez. Comeu pouco, tomou muitos analgésicos para dor de cabeça. Chorou litro e litros. Não atendeu telefone. Não tomou banho. Era um animal lambendo feridas. Teve vontade de morrer, de sumir, de dormir para sempre.

Na manhã da segunda-feira, levantou-se e decidiu viver. Os colegas comentaram seu aspecto bem ruim. Não viram nada.

Viveria um dia de cada vez a partir de hoje, e assim passaram-se muitas segundas e terças, muitas quartas e quintas, muitas sextas, sábados e domingos até que ela o encontrasse na rua com a mulher e o filho, já bem crescido e parecido com ele. Cumprimentaram-se. Ele perguntou como ela ia. Ela respondeu que muito bem. Parabenizou pelo filho, lindo. A mulher afastou-se por um instante para pegar o menino que ia mexer em qualquer coisa suja. Ele disse que tentara ligar, mas o número tinha mudado. Ela olhou para ele um instante e disse: - Me faz um favor? Porque você não morre?

Megeras Magérrimas

Nenhum comentário: