We’ve tried to run the city. But the city ran away.
(…)
Ela era dois anos mais velha, e discretamente diliça. Namorava um sujeito ainda mais velho, infinitamente chato, que fumava maconha e falava mal do Reagan o dia inteiro. Ele nunca soube por que ela o tomara por amigo. Mas se tornaram inseparáveis: redigiam ensaios em dupla, conversavam o dia inteiro, ela intermediava encontros com amigas gostosas, ele a ensinou a tocar I Shot the Sheriff na guitarra. O endosso de uma das vixens da classe o tornava instantaneamente menos bundão. A banda que ela ajudou a montar, se não ideal, pelo menos atraía 50 ou 100 gatos pingados ao bar de beira-campus em que tocava uma vez por semana, e ela sempre lá, aplaudindo, assobiando, “go, baby”. O namorado chato aparecia às vezes: gostava de Boomtown Rats, um perfeito exemplo prático para a expressão “abaixo da crítica”. Para desgosto dele, que vinha desenvolvendo alarmante crush de proporções catastróficas pela amiga, o namoro era sólido: três anos. E, como sempre, pânico: melhor não falar nada. Sabia bem seu lugar na escala geral das coisas.
Depois de muito lobby dela e de muita arenga do tio-avô e da tia-avó que o hospedavam e respondiam por seu bem-estar diante da família no país de origem, decidiu alugar um apartamento. No prédio dela, claro, uma arapuca decrépita ocupada metade por universitários perpetuamente falidos e metade por aposentados negros de Newark, que se iludiam com a idéia de estar “morando na praia”. Era uma kitchenette, como se diz em bom português, e sambada que dava dó. Mudou-se no meio da semana, arrumou seus poucos pertences, meio desanimado com a mobília cambaia, as paredes encardidas (filhinho da mamãe e nem sabia, o nosso herói), mas ainda assim orgulhoso: sua primeira casa. Na sexta, atravessou o rio pro primeiro show de sua vida na Cidade –no clube sopa de letrinhas onde tantas das bandas que o inspiraram haviam começado. Pra sua tristeza, ela não apareceu, e ele terminou dormindo com uma ou duas finlandesas chamadas Minna, contrabandeado para o albergue que as hospedava no bairro do alfabeto. No sábado, foi direto da Cidade pro trabalho –oito horas na biblioteca e depois um banho rápido na universidade e mais 10 horas tirando draft beer no balcão do bar. Chegou ao apê às cinco da manhã, 46 horas sem dormir e, quando abriu a porta, encontrou um novo sofá (usado), paredes recém-pintadas, uma estante de caixas d’água coloridas, uma cara de lar. E na parede oposta ao sofá-(cama), pichada com a letra inconfundível da amiga, a gigantesca inscrição “Teenage Wasteland”. Caiu dormindo com um sorriso nos lábios.
Levantou só ao raiar da segunda-feira, e a primeira providência do dia foi estacionar o Cutlass na frente da única floricultura da cidade, esperando impaciente que a proprietária nonagenária chegasse. Gastou metade das gorjetas do sábado (e dispensou metade das refeições da semana) no primeiro e exagerado buquê de sua vida, voltou ao prédio, onde escreveu o mais curto e honesto bilhete de todos os tempos (“Thanks. Love, F.”), usou a chave que ela lhe confiara e deixou as flores no apê da amiga, em cima da mesa. Aí, pânico: passou a manhã de aula tentando evitar um encontro com ela, a tarde de trabalho na biblioteca do centro de jazz preocupado com a possibilidade de que o namorado mala encontrasse as flores e entendesse mal (ou bem demais), a noitinha de ensaio agoniado com a possibilidade de que as flores fossem over, fossem corny, fossem brega como ele. Chegando em casa às nove, encontrou um bilhete na porta: “Join me for dinner, no matter how late”. Relembrou o trecho fatídico do diário de Hölderlin (“o mais triste, diante da mais bela das flores, é ter de dizer ao coração, por vezes bastante orgulhoso: cala. Não te é destinada”), mas tomou banho e bateu de leve à porta da amiga. Ela usava o vestido que ele mais gostava, orange como na canção de Mingus, velas iluminavam a sala, uma garrafa de vinho esperava aberta na mesa. Beijaram-se nos lábios, de leve, mas isso se tornara costume, uma marca de “how special you are, sweet boy".
Pode ter sido o vinho. Pode ter sido Steve Winwood cantando "Can’t Find My Way Home". Pode ter sido um triunfo da insana combinação genética que uma vez a cada 10 anos o arrastaria por esse mesmo caminho, mas por uma vez ele ignorou o pânico, abandonou a bravata, e deixou o coração falar, enquanto o macarrão horrível que ela cozinhara esfriava nos pratos. E, tendo dito o que precisava dizer, e agradecido tudo que tinha por agradecer, levantou, beijou a mão da amiga, assustado com a lágrima solitária que descia pelo rosto dela, e fugiu pra casa. “Cagão, cagão, cagão, palmeirense, cagão”, repetia ele, roído de remorso, arrastando os pés corredor abaixo. Mas, às duas e meia da manhã, ela tamborilou com as unhas na porta. “Dispensei o J.”, comunicou. E a natureza seguiu seu curso. (Meu, 20 anos esperando pra usar essa frase!)
(…)
reencontros no Filthy McNasty
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