24.12.04

Os olhos dele eram azuis

Fosse apenas pelos grandes e belos olhos azuis dele, já teria valido a pena. Brinco na orelha esquerda. Magro. Mais ou menos alto. Econômico e elegante nos gestos, nas escolhas, até mesmo no jeito despojado de vestir, calculado tal como o desenho perfeito do cavanhaque. Era uma espécie de garotão grisalho, conjunto que, para ela, estava bem além do agradável.

Nunca haviam se visto antes e, no entanto, ela se sentia bem ali, tomando um café sem a menor pressa, ouvindo e se perguntando como um sujeito podia ser ao mesmo tempo tão adorável e tão odioso. “Você tem seus encantos”, ele falou. “E seus elogios são quase ofensas”, pensou ela, mas nada disse, sorrindo sempre, afundada no sofá da cafeteria, pés cruzados em cima da cadeira à sua frente, à espera de um sinal, qualquer sinal, um gesto, uma frase menos desajeitada, qualquer coisa que espantasse aquele incômodo que era a poeira levantada de tempos em tempos pelos comentários dele, de uma agressividade tão contida quanto indisfarçável.

“Me destestou”, ela imaginava, quando foi interrompida pelo beijo dele. Adorável. Seguido da frase: “Você é algo tangível”. Odioso. Imediatamente, ocorreu-lhe que seria apenas uma mulher acessível, algo como “é só que ele tem ao alcance das mãos”. Ele a detestara, era certeza. “Vamos transar?”, ele perguntou. “Não”, foi a resposta dela, um biombo para seu óbvio desejo. Não iria para a cama com aquele sujeito, isso era definitivo, porque não entendia o que ele não dizia e tinha a impressão de que as palavras que saíam de sua boca eram embaladas por uma violência silenciosa com a qual não sabia lidar, ela e sua cordialidade distante, sua delicadeza domada.

Do nada, ele saiu-se com esta: “Tá vendo aquele casal ali? O que aquela menina tão bonita viu num sujeito feioso daquele? Um bolha, olha o cara. Não tá nem aí com ela. E olha que até eu me apaixonei por ela”. “Vai lá e trepa com ela”, respondeu-lhe, cuspindo cada sílaba em voz baixa e clara. “Não tem nada a ver. Com a gente, é outra coisa, é real. É tangível”, ele disse, levantando-se para pagar os malditos cafés. Tangível eram a mãe dele, a irmã, a filha... Ela não queria ir e tinha raiva de querer ficar, mas conformou-se.

Já na calçada, sem olhar diretamente em seus olhos, ele falou: “Se a gente não transar hoje, acho que não vai rolar nunca mais”. “Chantagem?”, ela perguntou. “Não. Palpite”. Despediram-se com um beijo na boca. Ternura. Não se entendiam com as palavras, talvez se entendessem com os corpos. "Bobagem romântica", ela pensou, rindo. “Vê se não some”, foi a última coisa dita por ele, enquanto ela entrava no carro com pressa de tirar dali a barafunda de atrapalhação, inquietude, medo, raiva e tesão que lhe revirava o estômago e os pensamentos. Desapareceu em segundos na noite da larga avenida.

Ponto, afinal

Nenhum comentário: