4.3.05

A Fábula do Garoto Quieto e da Menina Colorida

Há muito, muito tempo havia um garoto quieto, inocente, gentil e que tinha medo dos sentimentos: os deles e o dos outros. Havia também uma menina colorida. Linda, com ou sem o seu chapéu amarelo (ou azul). Ela era alegre, mas podia ficar brava de dar medo. Era carinhosa, mas também podia ser bem arisca. Enfim, como todos que viviam naquela terra, os dois eram complicados.

Quando se conheceram, a menina e o garoto viraram grandes amigos. Andavam de mãos dadas, se abraçavam, trocavam carícias inocentes. O menino amava aquilo tudo, só que ele sofria, coitado. Ele gostava muito da menina colorida, mas não sabia como dizer ao mundo isso, mesmo achando que o mundo inteiro sabia do seu segredo. Tinha medo que a menina colorida fosse embora quando soubesse o que havia dentro dele. Imaginava que ela sairia correndo quando descobrisse. Ou será que não fugiria? "Não, não vale a pena arriscar", dizia ele para si mesmo.

A amizade deles foi crescendo rapidamente e já era do tamanho do mundo. Mas aquilo que havia dentro do garoto também estava crescendo. Passou a incomodá-lo. Chegava até mesmo doer. Mas ele não dizia nada. No começo, a menina colorida parecia não se dar conta disso ou, pelo menos, não se incomodava. Mas aquela coisa ficou enorme e já tentava ocupar o mesmo lugar da amizade, que também era enorme. Assim, de repente, aqueles sentimentos do tamanho do mundo se empurram para bem longe, e os dois se separaram. Eles até queriam estar juntos, mas não conseguiam. Estavam muito longe um do outro. E foram se afastando, se afastando até se perderem de vista. Pensaram que não se veriam jamais e, por isso, aquilo tudo foi aos poucos caindo no esquecimento.

No entanto, muita gente esquece que o mundo é uma grande bola e, se você caminhar sempre em linha reta, acabará chegando ao mesmo lugar de onde saiu. E foi isso que aconteceu com o garoto e a menina colorida, só que muitos anos depois. Foi um momento surpreendente e feliz para os dois, muito embora era inegável que os dois tinham mudado muito depois de tantos anos.

Pouca gente sabe mas nossas memórias são bolinhas de vidro que vivem em nossas cabeças. Algumas são frágeis como uma flor. Outras grossas e duras como pedra. Algumas são cristalinas como o ar. Outras, escuras e impenetráveis como a noite.

Essas bolinhas vivem se mexendo de lá pra cá em nossas cabeças. De vez em quando elas surgem do nada e acabam desaparecendo tão rapidamente quanto apareceram. Outras estão sempre perto da superfície. E tem aquelas que estão sempre escondidas, pois, como são pesadas, acabam bem lá no fundo e é preciso algo muito forte para tirá-las de lá.

Voltando à nossa história, quando eles se reencontraram as bolinhas de vidro na cabeça de cada um começaram a se agitar. Na cabeça do garoto — que já não era tão quieto assim (era inclusive metido a engraçadinho) —, elas mexeram com tal força que mesmo as bolinhas mais pesadas começaram a sair do lugar.

Ele viu todo o tipo de bolinhas. A maioria era alegre e o fez sorrir. Algumas, porém, eram tristes. Aí ele chorava. Mas uma delas era especial. O vidro era duro e inquebrável, mas era cristalina e diáfana. Dava para ver tudo lá dentro. Mas só ver. E ele viu a menina colorida e todos aqueles sentimentos um dia maiores que o mundo dentro da bolinha, que era extremamente pesada para algo tão pequeno. Ele queria tocar o seu conteúdo, mas o vidro era duro de mais. Ele queria mostrá-la para a menina colorida, mas, como se sabe, ninguém além do dono vê suas próprias bolinhas.

Já a menina de amarelo viu bolinhas de vidro diferentes e não entendeu porque o garoto quieto ficava mexendo tanto no que para ela pareciam bolinhas imaginárias. E ele tentava explicar como eram as suas bolinhas, mas não conseguia. E ele queria saber como eram determinadas bolinhas na menina, mas algumas ela não conseguia achar. E ele ficou insistindo para ela procurar. Só que isso a deixou irritada e ela foi mudando de cor. Primeiro amarelo, depois azul, vermelho, roxo... E o garoto quieto não sabia falar sem fazer referências as bolinhas, tão importantes para ele, e até tentava fazer piada da situação. Mas ela não achava graça nenhuma.

Foi quando o garoto percebeu que as suas bolinhas de vidro eram dele e de mais ninguém. Não adiantava querer compartilha-las. Por mais belas e importantes que fossem. E que as bolinhas da menina colorida só poderiam ser encontradas por ela própria. Não adiantava forçá-la.

Foi nesse momento que ele virou para a menina de amarelo e disse:

— Viu o jogo do São Paulo, ontem?

Moral da história: Nossas memórias explicam quem somos, mas nem sempre são a melhor maneira de nos explicarmos para os outros. Com exceção, talvez, de seu terapeuta.

Chez Nigro's - Movimento pela Insanidade Coletiva

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