18.3.05

Focos da Fal : Correspondência Secreta

Querida Ticcia: Foi um domingo glorioso com as mulheres da minha família. Presa com elas por horas, numa cozinha. Veneno meu. Eu podia ter levantado e ido embora. Mas elas me fascinam, ao mesmo tempo em que me aborrecem, deprimem e assustam. As mulheres da minha família têm peitos pequenos, ombros estreitos, cabelos impecáveis, mechados. Elas não têm mais de 1,63 e usam blusas fofas em tons pastéis, de seda, com laçarotes. E façam o que fizerem na cozinha, suas blusas continuam impecáveis. Assim como seus cabelos. Elas não fumam. Seus filhos são ajustados. Elas têm empregos sensatos, carreiras planejadas. Elas comem fibras. Elas borboleteiam rápidas, ligeiras. E eu, alta, gorda, grande, com uma mancha de molho no peito (no meu enorme e inadequado peito), perto delas me sinto um gigante lerdo. Lerdo e cheio de dúvidas. Sou aquela que derrubou o arranjo de flores (que uma delas fez, elas não compram essas coisas prontas), quebrou dois pratos, entupiu a máquina de lavar louça (as mulheres da minha família têm máquinas, muitas máquinas). Sou aquela da perna com a qual o cachorro tenta cruzar. Elas sabiam o que queriam ser quando crescessem e foram. E são. Eu não. Elas não brincam de casinha, suas casas são austeras, exatas. Elas têm tantas certezas. E todas absolutas. E eu me sinto mínima, burra, fútil, fútil. Elas tiveram todos os bebês que quiseram antes dos 25 anos, e agora riem duma prima distante que se vê as voltas com fraldas e brotoejas aos 43. "É tão... ah, querida, você sabe, patético uma mulher dessa idade tendo que lidar com um bebê. Você tem sorte de não passar por isso". Aliás, tem sempre uma das mulheres da minha família me dizendo esse tipo de coisa. "Você tem sorte por não se preocupar com dietas, eu levo uma vida de escrava". "Você tem sorte por não ter filhos, eu vivo só para eles". "Você tem sorte por não ter um emprego, eu não sou promovida há 6 meses". E eu, a sortuda, encolho meu pés embaixo da cadeira e sorrio para minha vodca (Elas bebem vinho branco suave, doce, com licor de cassis. Eu bebo vodca. Pura. Muita).
Olho em volta, naquela cozinha imaculada, imaculada num dia de festa (nem quando eu tinha faxineira eu tinha uma cozinha assim), para observar a bancada impecável, os eletrodomésticos cromados, e uma delas logo me pergunta "Querida, o que foi, você não está com fome de novo, não é?". Elas me tratam com a condescendência que reservamos para os senis, as mulheres da minha família. Sorriem com superioridade para perguntar "E aquele seu livrinho? Ah, eu achei bonzinho, mas não pude ler inteiro, muitos palavrões, você sabe". As mulheres da minha família não falam palavrões, não lêem palavrões, não pensam em palavrões. As mulheres da minha família me atraem. Elas me hipnotizam. Nessas poucas horas de contato (eu passo aproximadamente quatro anos sem vê-las), tento aprender como ter as unhas lustrosas, o cabelo imóvel, os gestos contidos. O pobre A. me resgata, heróico, galante, beijando minhas mãos e inventando desculpas elaboradas. Ele também não entende por que eu continuo vindo. Eu não consigo explicar o fascínio, o masoquismo. Saio de lá com ataques de asma. Não, eu não tenho asma.

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