Ê, ô, ê, ô, o Anhanguera é um terrô
Meu pai cresceu em família de 10 irmãos –se incluirmos nonno Ercole e nonna Herminia no cômputo, ele constituía minúscula e oprimida minoria corinthiana num lar dividido entre tricolores e palestrinos. Sêo Luigi e quase todos os irmãos eram jogadores razoáveis de futebol, e bons dançarinos (um deles, Guy, continua, passados os 60, a ser um exímio pé de valsa). Para o clã Norogna, futibór era coisa muito séria, e a paixão pelo esporte infectou a geração que se seguiria –tanto eu quanto meus primos éramos torcedores fanáticos desde moleques e, porque a história se repete em fezzo, passei a ser a minoria corinthiana oprimida em meio a um mar de palmeirenses e são-paulinos. Com duas diferenças essenciais, though: quando o babbo, nascido em 1941, virou corinthiano, o time ganhava tudo, enquanto eu passei a infância naquela longa seca de títulos que valeu ao escrete mosqueteiro o apelido “faz-me rir”. Plus, eu sempre fui grosso. Terminalmente. Em qualquer posição. Em qualquer modalidade das lides ludopédicas –campo, salão, várzea, gol a gol no quintal da tia- Uncle Filthy sempre viu a bola nascer quadrada.
Nonno Ercole era assíduo freqüentador de um clube de futebol de várzea da Barra Funda, o velho bairro operário paulistano em que a família vivia, e quase todos os seus filhos passaram pelo lendário esquadrão do Anhanguera, presença imprescindível nos torneios matutinos do CMTC Clube. A divisão de interesses dos freqüentadores do clube era claríssima –os mais jovens jogavam bola, os mais velhos jogavam boccia, todo mundo bebia pra cacete, mulher não entrava e qualquer pretexto servia pra convencer os silvícolas a sair na porrada. Se bem meu pai e meus tios sonhassem ver os respectivos filhos honrando a camisa vermelha e branca do “Bambambam da Barra Funda” (marchinha carnavalesca que servia de hino ao Anhanguera), quase nenhum deles continuou morando no bairro depois de casado, e com isso minhas visitas ao clube foram poucas –se bem infalivelmente divertidas.
Os velhos italianos que formavam a base de sócios eram todos, claro, muito racistas, ainda que os muitos anos de Brasil tivessem servido pra que aprendessem a conviver bem com os afrodescendentes que começaram a ocupar o bairro e, com o tempo, conquistar vagas no time do Anhanguera –afinal, os jovens italianinhos tinham todos se mudado para bairros “granfa”, como diziam os nonnos com desdém. O primeiro negro a se tornar sócio do clube, e provavelmente o primeiro negro a descer bordoada em um italiano e ser aplaudido pelos velhinhos, era um sujeito forte, alto, ferroviário aposentado prematuramente depois de um acidente de trabalho. Quando abandonou a cancha, se tornou juiz oficial dos jogos do Anhanguera, e seu fino senso de patriotismo local rendeu muitos pênaltis dúbios e impedimentos inexistentes em benefício das hostes alvi-rubras. Porque o juiz tinha perdido um braço em infeliz encontro etílico com uma locomotiva, obviamente os velhos corneteiros italianos o apelidaram “Polvo”.
Na última vez em que fui ao Anhanguera eu tinha uns 14 anos. O jogo era um “contra”, e os adversários eram moleques de uma metalúrgica do ABC, todos excelentes jogadores. Apesar dos melhores esforços do Polvo e do uso liberal do jiu-jitsu pela zaga do Anhanguera, o jogo já estava três a zero pros visitantes no primeiro tempo quando o juiz se viu obrigado a marcar uma falta contra o time da casa. O faltoso, um moleque mulato com cara de mau caráter, imediatamente xingou o juiz de “aleijado filha da puta”, e o Polvo usou a mão que lhe restava para aplicar-lhe sonora bolacha. O time adversário imediatamente se escondeu atrás do gol, perto do tapume, e o time do Anhanguera pôs fim ao jogo brigando entre si, metade defendendo o juiz, metade acusando-o do hediondo crime da imparcialidade. No meio da confusão, o que mais se ouvia eram os palavrões que o Polvo bradava, em italiano impecável –era “figli puttane” pra cá, “affanculo” pra lá. Meu avô sorriu com a bola de boccia na mão: “É por isso que eu amo esse clube”. Quando morreu, só de sacanagem, deixou instruções severas para que o Polvo fosse um dos carregadores do caixão -do lado em que não tinha braço, claro.
Filthy McNasty
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