10.4.05

Eulálio Catamiro

Desligou o telefone. Era mais uma daquelas ligações pedindo para usar o nome de seu marido, falecido, em algum tipo de obra pública, lançamento artístico, algo assim.
Ela se lembra de todas.
- Queríamos usar o nome do Eulálio para batizar uma ponte, você se opõe? – indagou um Prefeito.
- Mas é claro que me oponho! – ela respondeu – Já imaginou quanta gente vai se matar pulando daquela ponte? E os acidentes de carro? Não, não... Nada de nome de ponte, o senhor me desculpe.
- Sim, tudo bem, a intenção era boa...
Sempre havia alguma justificativa que deixava o interlocutor praticamente sem resposta. Ou, quando tentava argumentar, recebia a apelação final.
- A obra do novo aeroporto está quase concluída. Aproveitaremos para renomeá-lo, vai se chamar “Aeroporto Internacional Eulálio Catamiro”. Queremos muito sua presença na inauguração – determinou o Governador
- Desculpa, senhor Governador. Sou sua eleitora, mas nem por isso devo concordar com esse batismo. Não quero o nome de meu marido associado a uma obra assim, você há de entender – respondeu.
- Ah, me perdoe, mas não entendo! É uma obra linda, o orgulho do Estado, e com o nome do seu marido! Veja que coisa boa!
- Não vejo por aí. Imagino os acidentes, imagino o pessoal perdendo vôo, ou então atrasado, reclamando “do trânsito absurdo até o Eulálio”. Não quero que alguém enfrente um trânsito absurdo para chegar atrasado ao nome do meu marido.
- Mas e quem vier em visita? E quem tiver contato com esta nossa Terra usando o Eulálio como intermediário? E os nossos conterrâneos que finalmente conhecerão o exterior, também por meio do Eulálio?
- Não, Governador. Não autorizo. Eu sou a esposa, e não quero o nome do meu marido associado a isso. Não há herdeiros, não há ninguém mais vivo que seja familiar de Eulálio Catamiro. Espero que respeite esse meu desejo.
- Tudo bem, tudo bem. Mas saiba que, no futuro, ninguém mais se lembrará dele. Agora, todos estão ainda comovidos, e é a hora certa de batizar. Depois, minha cara, algum outro aí acaba morrendo, e ninguém mais se lembra de Eulálio! Passar bem! – ele desligou o telefone, crente de ter magoado suficientemente a audaciosa cidadã que ousou recusar tal oferta.
Mas a viúva não estava exatamente chorando. Um leve sorriso podia ser notado em seu rosto. Assim como sorri agora, enquanto se lembra de cada recusa.
Não concedeu entrevista alguma, não liberou fotografias, não aceitou que o nome de seu marido fosse usado para qualquer coisa. Seu advogado já tinha um modelo de ação judicial, mas isso só foi preciso em dois casos, fora do Estado.
O único jornalista que se pôs a tratar do tema, curiosamente a elogiou, convidando todas as viúvas, viúvos e órfãos a fazer o mesmo, ou seja, não explorar a posteridade do ente querido, por mais que fosse uma “pessoa pública finada”.
Ela já se referiu a Eulálio como “pessoa pública finada”. Roubou a expressão do jornalista. Só não respondeu ao artigo, agradecendo, porque não quer mexer ainda mais no assunto.
Sabe bem que o Governador tem razão. Com o tempo, o povo esquece, e ninguém mais vai querer batizar qualquer coisa de “Eulálio Catamiro”.
Como sempre, a grande lembrança que lhe vem é a do velório. Lembra-se perfeitamente daquela mulher, no fundo da sala, aquela que não falou com ninguém. Entrou e saiu, fez lá um sinalzinho da cruz, mas foi o bastante.
A mesma mulher com quem flagrara o marido havia vinte e cinco anos. A mesma mulher com quem o marido disse que não teria nada de mais. A mesma mulher que teria se mudado para a África, ou teria morrido de catapora, ou passado por algo assim.
A mesma mulher que aquele filho da puta jamais deixou de ver ou de amar. E que jamais deixou de amá-lo também.
De tanta raiva pela lembrança, jurou – e vem cumprindo o juramento – que todos se esquecerão de Eulálio Catamiro.

bico de pena

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