2.6.05

A SIMPLICIDADE

Vivemos em voz baixa, recriminando nossos atos, censurando. Quem não se flagrou falando sozinho, a praguejar uma idéia? Quem não teve a mania de se piorar, para gerar pena e complacência? Quem não se exagerou para recuperar a solidão? Apagamos a simplicidade, o sol assanhado lavando a calçada, os pássaros ajudando as árvores a tirar a camisa, os cachorros com o olhar familiar de mendigos, as pequenas delícias de fazer parte do mistério. Não podemos ter vivido tão errado, tão torto, a ponto de não deixar nada. Não acredito em páginas brancas. Alguma coisa está por baixo. Alguma coisa poderá ser lida com o relevo da claridade. Que minha mulher possa se lembrar dos momentos em que não prestava atenção à alegria para ser a alegria. Que ela possa achar graça, sem a minha ajuda, quando procuro desajeitado as contas na gaveta. Que possa se emocionar de preguiça quando levanto de noite para ver se fechei a casa. Que possa se render quando deito no chão de igual para igual com os filhos a brincar de bolinha do banheiro ao quarto. Que a rotina não seja tudo igual, e sim uma maneira silenciosa de ser diferente por dentro. Que não critique a mãe quando ela recordar da minha infância em público e acrescente um detalhe às lembranças. Que ponha semente no chão, não no lixo, a esperar que uma delas venha a me surpreender com a minha altura. Que possa tocar no assunto com volúpia. Se eu fui afetado, ambicioso e irresponsável, que a ternura me devolva o equilíbrio e peça desculpas distraído, beijando a mão do vento. Que meus amigos tenham confiança em mim e fiquem com vontade de beber mais e conviver mais quando meu nome aparecer na conversa. Que tenha sido um leitor dedicado quando amante, com os olhos fechados pela pressão dos lábios. Que algo que tenha dito de carinho venha aparecer ao lado de um palavrão. Que encontre cartas e cartões em meio aos livros e leia como se fosse a primeira vez que estou os recebendo. Que não seja tolerado, que não seja útil, que seja necessário mais do que sou. Que não volte com conversa abatida de que nada dá certo. Que seja corajoso a dizer o que pensava do que a não dizer o que pensava. Que tenha uma religião, mesmo que seja uma coleção de selos, e acredite que o mundo é um complô de Deus para me proteger. Que tenha companhia no trem, a abafar o apito da porta. Que possa viver desapegado do nome e da condição do nome, como um boi que não se envergonha da terra. Que possa aquecer a cama antes da minha mulher entrar. Que possa aquecer meu corpo antes de minha mulher entrar. Que possa aquecer o que já estava esquecido em mim.

.:. Fabricio Carpinejar .:.

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