7.11.05

Xadrez (2)

(Se eu reparei nela desde o começo? Claro que eu reparei nela desde o começo. Como sempre, não é a mulher mais bonita que me chama a atenção, mas a bonitinha que senta ali no canto: aquela cujos olhos sorriem ironias enquanto os lábios proferem platitudes, aquela que promete muito, muito menos do que é evidentemente capaz de cumprir.)

Deve existir um manual de etiqueta pra receber moça-bonita-que-não-se-pode-carcá em quarto de hotel, mas eu não li. Dar um jeito no banheiro, recolher a papelada e os livros espalhados, trocar de roupa (e vestir o que, meu são jizuis? Camiseta e carção, god forbid? Calça sociar e camisa de manga comprida? Terno? Meu uniforme do CPOR? Sapato? Não?) Abro a porta de jeans, camisa, tênis, e ela entra de moletom preto, camiseta branca, cabelos úmidos do banho, sorriso tímido, tabuleiro sob o braço. Não sei se beijo o rosto, dou a mão, faço uma mesura. Quando percebo, estamos no terraço, trocando olhares furtivos, esperando o room service e fingindo discutir astronomia (ela não parece muito convencida de que uma constelação que invento traçando linhas arbitrárias com um dedo trêmulo leva mesmo o nome de “Celestial Chicken”).

(É raro encontrar gente que combina racionalidade incisiva e tato suficiente para apontar os buracos no raciocínio alheio sem despertar a ira dos pamonhas. O que ela fez mais ou menos três vezes na primeira e excruciante meia hora de reunião do grupo de trabalho ao qual havíamos sido ambos condenados, até que o pamonha-mor, como sói aos pamonhas, alfinetou a “mocinha” sugerindo que ela provavelmente não compreendia as complexas questões técnicas envolvidas blablablá. E ela elegantemente nem esfregou nas fuças do sujeito o doutorado em engenharia, comunicado ao mala por um flunkey em cochicho urgente. O pamonha pelo menos enrubesceu, ela fez que não viu, quase todo mundo (eu não) tentou esconder a risada. Servindo o café depois do almoço, conversei com ela pela primeira vez, incrédulo diante dos quatro açúcares que dona engenheira despejou na xícara, enquanto o mala, porque Deus castiga, derramava o chá na camisa. “Can’t stop the gods from engineering”, citei. Ela sorriu com uma discreta pitada de malevolência.)

O garçom chega com um carrinho coberto por toalha branca até o chão, a salada dela uma coreografia pictórica de tomates e verduras, minha omelete protegida por uma daquelas coberturas hemisféricas prateadas de filme dos anos 40. Ele me oferece o vinho para aprovação (e eu não tinha pedido vinho, porque até eu sei que vinho com omelete, ugh.) Merlot tacitamente deixado de lado para o torneio de xadrez, percebo dona engenheira estendendo um olho comprido pro meu prato. Ofereço; rachamos. Ela se apanha raspando a travessa com uma fatia de pão, suspende o gesto no ar, pão em freeze frame a meio caminho da boca. Faço aquele gesto universal de “manda bala” que serve a todas as culturas, ela ri, eu rio. “Tô comendo como estivador”, confessa. “Na minha terra, a gente diz comendo como pedreiro”, comento. “Na minha, se diz comendo como um criador de porcos”, ela complementa. “Comer cas mão tem lá seu charme”, proponho. “Use your hands for everything but steering”, ela sorri.

Touché.

Filthy McNasty

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