O abismo
- Quantos anos de casada?
- Quinze! Dá pra acreditar?
- Hoje em dia é um caso raro...
- E fiel!
- Isso é realmente um caso raro... E os seus filhos?
- Lindos... São o que eu fiz de melhor na vida.
- Você é linda...
- Por favor, não me toque assim...
- Do que tem medo?
- Eu não sei... Eu...
- Relaxa...
- Mas e se...
- Não vai acontecer nada de mais... Você mesma disse que seu marido também tem uma amante. Há quantos anos ele não toca seu rosto desse jeito? Seu rosto... suas mãos, braço... ombros, nuca...
- Pare, por favor. Ele nunca deixou que eu soubesse daquela mulher... Eu só soube porque mexo nas coisas dele... Porque não consigo me controlar.
- Então... Vem aqui...
Saliva... Há tempos não sentia gosto de saliva misturada na minha. Ele beija bem... Tão bem quanto agarra na medida certa, entre a dor e o carinho. Minha blusa... Tão fácil tirá-la. Como ele consegue fazer isso? Qualquer um faria... Escolhi a dedo na loja: decote, zíper na frente para que ele se sentisse provocado pela facilidade; cor de rosa, porque meu marido um dia me disse que era o tom que melhor cobria a minha pele. O que é que estou fazendo com meu casamento? Merda... Merda? Quando foi que eu comecei a falar palavrões desse jeito? Merda não é palavrão... Deixa de ser pudica. Palavrão é caralho, buceta, porra...
- Como você é gostosa...
Deus do céu! Se ele disser isso outra vez eu desmaio... O que está acontecendo comigo? O que estou fazendo? Meus filhos... Merda! Culpa maldita. O Roberto não merece isso... Eu o amo. Ele também me ama... Nunca deixou faltar nada em casa, sempre foi bom pai, trabalhador... E trepa com aquela vaca! Vaca, filha da puta, sirigaita de uma figa! Ele merece sim. Não... não chora. Não vai chorar agora porque isso seria ridículo. As crianças entenderiam... Segura essa lágrima. Elas entenderiam que não estou fazendo isso por mal, que só quero me sentir mulher novamente... Mas por que essa necessidade depois de tantos anos? Ah, esse desejo todo que ele demonstra por mim... Ele... Mas quem é ele? Preciso de tempo... As crianças entenderiam que eu mereço ser feliz... Mereço ser feliz, mereço ser feliz, mereço ser feliz...
- Não. Não posso... Pára! Desculpa... Eu não consigo. Não posso fazer isso com meus filhos, meu marido... Não posso fazer isso comigo mesma.
- Cala boca.
- Anh? O que...? Por favor, para com isso. Eu não quero... Estou pedindo pra parar.
- Já falei pra calar a boca, vadia!
O medo que me excitava e deslizava sobre a minha pele, imobilizou o meu corpo. Os fluídos se transformaram em sons que ecoavam no silêncio da minha mente. Parei de pensar. Meu cérebro parecia ter expulsado as palavras e dado lugar a um flashback dos últimos dias. Me vi com raiva do meu marido por me deixar tão insegura. Com raiva por bisbilhotar a carteira dele com a certeza de que encontraria os rastros do caso que ele estava tendo com a chefe. Me vi sorrindo para o moço do táxi só para me vingar... Falei mais do que devia sobre a minha vida, me insinuei, marquei encontro para o dia seguinte. Vi minhas crianças dando tchau ao entrarem na perua escolar... O batom vermelho no espelho do banheiro. O cheiro de água de colônia quando entrei no táxi, a mão dele esbarrando no meu joelho, meu sorriso ruborizado no retrovisor... Vi a paisagem que admirávamos enquanto subíamos a serra e vi ele encostar o carro em um lugar que ele chamava de seu mirante secreto. Senti meus pêlos arrepiarem por não conseguir parar de pensar que faríamos amor no banco de trás... Me vi mulher bonita mais uma vez... A mulher desejável que não via há tantos anos. Vi ele parecer doce e ao mesmo tempo rude. Paciente e, de repente, estúpido e cruel. Meus pensamentos findavam ali. Ouvia somente o barulho das minhas lágrimas, do suor, do sêmen, da saliva, do sangue, do motor... Fechei os olhos. Abri enquanto caia da ribanceira...
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