Bretodeau? Bredoteau?
Nunca me esqueci dela, nunca me esqueci que ela estava lá. Remexendo coisas velhas, deixadas no escuro dos armários, encontrei-a: uma caixa de papelão. Dentro dela, filmes. E mais filmes. Filmes 8 e super-8. Filmes mesmo: rolos, uma dúzia deles, grandes e pequenos, em preto-e-branco e coloridos. O primeiro, datado de 1960. Haveria ali, enroladas dentro daquela caixa, quase duas horas de imagens em movimento: o registro em película de parte importante — a ponto de merecer ser filmada — da vida de meu pai. Na caixa ao lado, o projetor. E todas as suas impossibilidades. Uma máquina do tempo que, por causa dele — o tempo — talvez estivesse emperrada. Uma máquina do tempo, sim, mas talvez com a lâmpada queimada.
A máquina estava mesmo emperrada. Mas a lâmpada funcionava, o que já era um bom começo. Horas debruçado sobre suas entranhas expostas, e descobri a razão da paralisia: uma correia de couro endurecida, quase fossilizada. Libertada a correia, não foi difícil fazer o projetor voltar à vida e, pouco depois, eu assistia, de boca aberta, eu mesmo a correr e a gritar pela parede, em estranho silêncio — os filmes são mudos. E vi a mim no meu primeiro registro em película: minha mãe e eu, na piscina do clube, uma lombriga branca de calção e cabelos muito claros, olhos apertados pelo sol furioso do verão seguinte ao meu nascimento. Em outros filmes, outras coisas: o apartamento onde nasci, a rua, o restaurante, meu primeiro dia de aula, o navio para Portugal, a família de lá, amigos e parentes, os cachorros, e eu crescendo, de filme para filme. Os últimos registros, já em super-8, são viagens ao Mato Grosso em que não apareço: já devia andar a correr em outras películas.
Em todos os filmes, percebe-se aquilo que é, num só tempo, Graça e Miséria da espécie humana: o poder da Genética. Aquela criança que corre pela parede, em que tempo for, é igual aos filhos daquela criança, trinta anos antes ou depois. Aquele homem, que é o pai nos filmes, se parece com o homem que hoje o assiste.
Aquele homem que é o pai está morto. E a máquina do tempo mostra o óbvio ao homem que o assiste: o tempo dá voltas, o tempo é um carretel de filme. Seja filmado ou não.
Branco Leone: um blog sem conteúdo
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