Da barbárie
Amo as coisas com a mesma intensidade com que as odeio. Minto. Odeio mais. Infinitamente mais. Sou mesquinho e asqueroso. Um ser menor. Infinitamente menor. Poetizo? Nada mais incerto. Acordo todos os dias com vontade de atraiçoar o mundo. Trair. Enganar. Iludir. Magoar. Acomodo dentro de mim um amor pela maldade. Em Lisboa de todas as coisas que me irritavam pela manhã, nenhuma me dava tanta cólera como os vagabundos. Aqueles farrapos encostados às escadas que descem para o metro. Aquela barba asquerosa. Aquele cheiro. Pena? Nenhuma. Só à tarde. Nunca neguei uma moedinha pela tarde. Sou uma pessoa melhor à tarde. Jamais enxotaria um animal entre o almoço e o jantar. Ao cair do sol posso até com gente. E só Deus sabe como eu detesto gente. A maneira como falam. Como andam. Como respiram. Só respeito surdo, mudo e paralítico. Bem paralítico. E morto. Eu adoro morto. O meu sonho é só um: morrer e passar uns tempos na morgue. O defunto tem todos os defeitos das pessoas excepto a chatice. Com defunto posso eu bem. Como vai? Vou bem, muito obrigado. Como está hoje? Igual a ontem. Quer uma aguinha? Não bebo. Vai um docinho? Não como. Quer conversar sobre alguma coisa? Talvez na próxima vida. O morto é sábio. A vida, uma doença. Não percebo aqueles grupelhos que param o trânsito só para informar que algures no fim do mundo alguém está a morrer. Morre? Deixa morrer. Sou contra a vida. Só atrapalha. É obrigação de todo o homem civilizado lutar contra a sobrevivência. Contra a existência pobre. Insignificante. De todo o género de pessoas no mundo a mais chata é a pessoa boa. A pessoa feliz. A pessoa alegre. A pessoa sorridente. Aquele tipo de pessoa que dedica a sua vida ao velhinho e à criancinha. Eu bato em velhinho e criancinha como desporto. Acredito numa boa dose de maldade. Educada maldade. Moderada, até. Sem a nossa crueldade, a nossa perversidade, a nossa imensa filha da putice o mundo seria um lugar melhor, mais próspero, mais feliz, mas insuportavelmente aborrecido.
Diário
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