23.3.06

Sai de mim, Rubem Braga

A crônica é o mais cretino dos gêneros literários porque é o único que se dedica completamente à celebração do homem comum. Quando é um homem incomum celebrando o homem comum, temos uma crônica boa (se é que existem crônicas boas. Estou deduzindo a existência de uma crônica boa por raciocínio, mas nunca li nenhuma). Em outras palavras, temos um homem incomum ao mesmo tempo escrevendo bem e sendo demagógico; elogiando quem está abaixo dele e seu estilo de vida e lhe dando um tapinha sintático na cabeça.

Quando é um homem comum celebrando o homem comum, temos todas as outras crônicas que já vimos na vida, em todos os jornais. Olha lá o cronista sentado no banco da praça olhando os passarinhos. Os próprios passarinhos o odeiam. Se os passarinhos escrevessem crônicas, seriam textos xingando Rubem Braga de corno e Paulo Mendes Campos de sifilítico. A obsessão dos cronistas (e dos músicos populares) por passarinhos é estranhamente parecida com a obsessão de um autista por duas dezenas de clipes caídos no chão. Vai ler um livro!

Ou então está no banco da praça falando dos, meu Deus, “tipos de minha infância” pra quem chegar perto. O Zé Bolacha, que comia muita bolacha! A Maria da Sarna, que tinha sarna! O Juca da rua de cima, que era dono da bola de capotão! Quando leio as palavras “bola de capotão”, fecho o livro; mas tarde demais, porque já devia ter fechado na palavra “Zé”.

Por favor, não me fale dos seus joelhos esfolados de guri, nem da professora azeda que um dia (oh!) chorou na classe por causa da morte da filha dela, lhe ensinando assim que pessoas azedas também choram e lhe dando para sempre uma lição da fragilidade da vida! Nem da menina que fazia favores sexuais no terreno baldio atrás da marmoraria. E se for jornalista faz tempo (por oposição ao cronista-romancista e ao cronista-publicitário), chega de anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, entremeadas por mais anedotas pitorescas sobre Adolpho Bloch, e passando por anedotas pitorescas sobre Samuel Wainer (“um dia ele tirou a meia e ih, rapaz, tava fedido. Aí o Filinto Muller disse “Ih, rapaz, cobre isso”. Daí eu fui trabalhar no Zero Hora”). Cronistas-jornalistas acreditam que Adolpho Bloch era uma espécie de Samuel Johnson, e que os menores detalhes de sua vida merecem ser recordados. Não, nem os fatos principais da vida de Adolpho Bloch merecem ser recordados. Quero esquecer quem foi Adolpho Bloch com a volúpia dos desesperados. E o primeiro que chamar Samuel Wainer de Samuca vai levar com a minha edição das Obras Completas de Carlyle no nariz.

(…)

Alexandre Soares Silva

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