12.5.06

EUTANÁSIA DE FOLHETIM

Desliga esses equipamentos, sim. Não só autorizo como ordeno. A única coisa que quero de você é que desligue esses equipamentos na hora certa e depois esqueça tudo. Não preocupa com remorso – ele não vai acontecer, te garanto. E quando eu não existir mais tudo tem de desaparecer junto: os papéis na mesa com minhas anotações, minhas coisas, até mesmo aquela antiga foto no porta-retrato, lembra?: o casal, à frente do letreiro do hotel Termidor, sorrisos tão jovens quanto tristes. Ela, bela demais, e que nunca amou quem quis. Ele, que só esquecia a melancolia quando ouvia My Foolish Heart com o Billy Eckstine, veja só. Pois agora tudo vai se arranjar. A incapacidade para o amor está nos genes: cá estou eu para comprovar. Mas vou fugir da breguice do sangue na banheira, da comicidade tosca de miolos estourados na parede, do kitsch das pílulas. Você, que não retribui minha paixão, que sempre insiste na condição de aluna apaixonada só pelo brilhantíssimo professor, pelo gênio da Física Quântica, e nunca pelo homem; você que com sua indiferença me faz querer deixar de existir – justamente você é quem vai desligar os equipamentos dessa máquina. Primeiro eu entro nela e me transporto (já calculei tudo: dia, hora, lugar) para 1961, para a frente do Hotel Termidor, para ver chegar aquele jovem, belo e triste casal em lua-de-mel, e já na entrada vou me apresentar, vou convidar os dois para um martíni no bar do hotel, por fim vou dizer para não fazerem aquilo, de procriar sem paixão. Vou insistir para que tenham é compaixão de si mesmos, vou sugerir que um dia – ah, um dia – cada um vai achar o amor de sua vida, e sei que eles entenderão. Olhando no meu olho eles vão entender que eu sei o que digo. Ela chorará, num amargo alívio, e mostrará que mesmo chorando é tão bela. Ele concordará em ir comigo num passeio pela estrada, para continuarmos a encher a cara ouvindo música no rádio do carro. Eu, claro, não mais serei. Você só tem que prometer isso: desligar os equipamentos da máquina depois que eu chegar lá, para evitar que eu caia na tentação de desistir e voltar para você. Só assim essa máquina nunca terá existido, todo este laboratório também – e você, por conta deste ato de misericórdia, jamais terá sabido de mim. É o que me concedo: morte sem cadáver. Mas embalada por My Foolish Heart, com o Billy Eckstine, num auto-rádio em alguma dimensão de todo esse emaranhado quântico aí. E então? Promete?

Ao Mirante, Nelson!

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