28.6.06

EMPREGO

Não gosto de literatura, odeio escrever, nunca vou ao cinema -- não sei como tudo isso se juntou. No começo de 82 fui fazer uns biscates em Buenos Aires e li nos classificados que procuravam alguém para auxiliar um velho. Achei gozado o que pediam no anúncio: "Dá-se preferência a quem não goste de filmes." Fui ver. Parece que em Buenos Aires são poucos os que não apreciam perder tempo no escuro do cinema. Cheguei lá; a mulher dele -- que no começo pensei ser a secretária -- , uma japonesa, me recebeu. Fui levado à sala dele. Idoso mesmo, uns oitenta e tantos, por aí. E cego. Achei gozado um cego numa sala cheia de livros. A japonesa confirmou meu desapego pelo cinema ("Desprezo", insisti) e me explicou: eu iria receber para ler livros técnicos sobre os fundamentos do cinema -- enquadramento, planos, fotografia. Depois de aprender o necessário, iria acompanhar o velho a uma antiga sala de cinema no bairro de Palermo. Minha tarefa era, portanto, ir descrevendo as fitas para ele, utilizando os jargões que guardaria do aprendizado. No começo foi complicado, mas logo me acostumei. "Travelling até uma casa amarela", eu dizia. "Corta para plano médio de uma moça de olhos grandes, grandes e cor de caramelo fervido. Fade." E o velho de olhar grudado na tela, como se enxergasse. Pareciam até brilhar, aqueles globos brancos. Lembro que o único atrito aconteceu na vez em que acabei me entusiasmando com uma cena e fiz sem querer um comentário sobre o cenário -- então o velho me cortou, a voz mais rouca do que de costume: "Quero seus olhos. Não sua opinião." No mais, tudo correu na mais perfeita normalidade. Depois o estado de saúde dele foi piorando, as sessões acabaram e em quatro ou cinco semanas eu deixava Buenos Aires, com um bom dinheiro no bolso. Meses depois recebi um bilhete da japonesa, dizendo que ele havia morrido e deixado uma carta de agradecimento para mim -- que seguia em anexo. Mas era uma longa carta, e eu já disse que não tenho paciência para isso de literatura. Joguei a carta fora sem ler e segui minha vida.

Blog de Bolso

Nenhum comentário: